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Naquele mesmo dia, Camilo me guiou a uma sala subterrânea do Palácio. Ele usava uma lanterna para iluminar o caminho estreito. Apesar de o resto do edifício já estar devidamente cabeado e iluminado com eletricidade, o corredor permanecia escuro, como sempre devia ter sido, por qualquer motivo torpe. Num Palácio bonito e vistoso como aquele, um subsolo apagado e sem ar não poderia ter servido a bons propósitos. Mesmo em minha idade pouca, eu já tinha noção de vida o bastante para notar isso.

Nossos passos ecoavam no corredor de pedra, seguindo através do infinito.

Eu sentia em meus pés a vibração do tempo. Aqueles corredores guardavam o tempo em suas entranhas. Tinham o mesmo cheiro empoeirado que deviam ter quando meus ancestrais passavam por ali, se é que passaram ali alguma vez. Eram a gravidez do Palácio, gestando algo monstruoso.

- Você nunca deve mencionar a existência desta sala para ninguém, Sacerdote.

- Pandora.

Ele virou o rosto para mim, jogando o feixe da lanterna diretamente em meus olhos. Ainda usava aquele chapéu velho, que o fazia parecer antes um mendigo do que um membro do alto escalão da cidade.

- Como disse?

- Estamos sozinhos. Pode me chamar de Pandora.

Ele parou de caminhar e virou-se completamente para mim, dobrando um dos joelhos para olhar na altura de meus olhos.

- Não importa se estamos sozinhos ou não, você deve exercitar sua mente para esquecer seu nome de hoje em diante. É mais fácil manter uma mentira quando acreditamos nela, e você terá que acreditar que é um garoto, e que é o Sacerdote. Mesmo no escuro de seu quarto, você nunca mais será Pandora, entendeu?

- Não sei se consigo fazer isso.

- Você vai ter que conseguir. – ele se ergueu, tocando o topo de minha cabeça com a mão como se eu fosse um bicho de estimação – Eu vou assegurar pessoalmente que você consiga. Não me desaponte, estamos investindo muito em você. Sua segurança me custa caro, e estou arriscando minha vida para te manter aqui. Espero que valorize isso.

Mantive o rosto baixo.

- Obrigada. – sussurrei.

- Garotos dizem obrigado.

Acenei com a cabeça.

- Então diga.

Ele estava me observando fixamente.
Não estava mais tão tranquilo quanto antes. Ele agora me olhava de um jeito como nem mesmo meu pai já tinha me olhado.

- Você ouviu o que eu disse?

- Eu... Não entendi...

- Eu mandei você dizer do jeito certo.

As paredes do corredor alongavam sua voz ao mesmo tempo em que pareciam estreitar ao redor de mim.

De repente eu queria correr, não estar sozinha no escuro com o homem que me observava com autoridade.

Ele cansou de esperar minha resposta e se inclinou para ficar na minha altura. Sua expressão não era de raiva, mas sim de algo que me pareceu muito pior. Se ele estivesse com raiva eu não teria sentido medo, porque saberia que estava descontrolado. Mas a expressão em seu rosto era controlada. Era uma autoridade fria e maquinada, e aquilo me encheu de terror mais do que qualquer grito que ele poderia ter levantado contra mim, porque ele estava frio. Ele estava frio e sabia o que estava fazendo.

- Estou esperando você me obedecer, Sacerdote. Você quer mesmo contrariar a pessoa responsável por sua segurança?

Eu queria responder. Era simples, era só dizer aquela palavra de quatro sílabas e ele estaria satisfeito e me deixaria em paz.

Algo em seu olhar, porém, me impedia de dizer a palavra. Assim como quando minha mãe me obrigava a dizer algo contra minha vontade, e eu costumava não dizer, por medo do que ela faria depois de conseguir o que queria. Camilo era muito mais assustador que minha mãe, principalmente porque não era minha família, e porque não era do meu sexo. Ele era um homem, e por algum motivo os homens já nascem com a habilidade de assustar mulheres com sua coragem de firmar o olhar sobre nós enquanto nós não temos a mesma coragem de firmar o olhar sobre eles. Ele era mais forte que eu, e sempre seria mais forte que eu, mesmo quando eu fosse adulta. Ele não tinha medo de mim, e jamais teria, e por isso não teria qualquer razão para me respeitar, fosse naquele momento ou vinte anos mais tarde.

E o que ele faria depois que eu dissesse a palavra? Ficaria satisfeito e desviaria o olhar frio sobre mim, ou ficaria frustrado por ter seu impasse resolvido e partiria para algo ainda pior? Eu podia sentir em seus olhos que ele estava se divertindo, por mais que demonstrasse irritação. Ele estava sentindo prazer em me dominar, e poderia ficar mais zangado ainda se eu quebrasse o ciclo vicioso que estava lhe dando a possibilidade de me dominar.

Mas eu sabia que aquilo teria que chegar ao fim, e o fim dependeria de mim. Já suando pelas palmas das mãos e com a respiração cortada, murmurei, sem olhar em seu rosto:

- Obrigado.

Ele sorriu, um sorriso que não era somente satisfeito, mas de certa forma torturante. Voltou as costas para mim e seguiu adiante pelo corredor.

Eu fiquei mais um tempo parada enquanto meu coração disparava na artéria em meu pescoço e aquele corredor ondulava à minha volta.

Eu fiquei mais um tempo parada enquanto meu coração disparava na artéria em meu pescoço e aquele corredor ondulava à minha volta

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora