24.

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Minha mãe não chegou no final da semana. Nem na semana seguinte. Nem no mês seguinte. E nem em todos os anos que se seguiram.

No começo eu questionava Camilo, embora o tapa que ele me deu no rosto me ajudasse a lembrar de não pressioná-lo demais. Ele dizia coisas diferentes, sobre como seria complicado enviar alguém para buscá-la, ou como a cidade estava violenta na fronteira, ou como o tempo estava inapropriado. Depois de alguns meses, minhas perguntas diminuíram, até que eu me cansasse de relembrar a existência de minha mãe, pelo menos nos dias mais atarefados.

Quando o Palácio estava adormecendo, porém, eu olhava pelas janelas, para as montanhas que me separavam do mar, e tentava imaginar o que ela estaria fazendo naquele instante, e se ela, assim como eu, também estaria se esquecendo aos poucos de quem eu era.

A cada dia meu nome se tornava mais estranho para mim, conforme todos me chamavam apenas de Sacerdote, ou senhor, ou o que quer que fosse. A cada dia era mais trabalhoso me olhar no espelho e tentar lembrar como era meu cabelo, como eram as roupas que eu vestia, como era ser mulher.

Meus olhos me observavam num rosto que seria masculino, não fossem aqueles traços impossíveis de disfarçar, como a ondulação de meus cílios, o desenho curvo de meus lábios, a protuberância suave de minha mandíbula, o nariz delicado...


Eram traços que insistiam em denunciar a verdade. De que, por mais que eu fosse filha de meu pai, jamais teria suas características inegavelmente masculinas.

E eu não conseguia deixar de pensar que, algumas décadas atrás, meu pai via sua imagem refletida naquele mesmo espelho, usando as mesmas túnicas, sentindo a mesma solidão, o mesmo vazio.

Eu devia me parecer exatamente como ele se parecia naquela época. Nos últimos anos em que o vi, porém, seu rosto estava tão mudado... Mal conseguia encontrar algum traço em comum entre nós.

Camilo dizia que sua mudança era fruto de sua sede insaciável por poder.

Mas, olhando de perto o rosto que herdei de meu pai, eu podia sentir que existia algo mais sombrio. Algo na natureza dele que, de certa maneira, havia sido transmitido a mim. Era sede, sim, mas não sede por poder. Se eu visse sede por poder em meus olhos, eu não me assustaria.

O que eu via era algo muito pior.

Eu conseguia ver os ecos. Ecos de pessoas gritando até morrer.

 Ecos de pessoas gritando até morrer

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora