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A Audição é iniciada com o máximo esforço de preservar as tradições do passado: os Auxiliadores ocupam os lugares habituais, com a diferença de seu número reduzido pela metade. O povo permanece reunido, também reduzido pela metade - a outra metade dividida entre mortos, exilados, foragidos ou simplesmente desagradados com o governo que se recusavam a participar das cerimônias. O Templo continua azul, embora sua solenidade estivesse manchada pelas cicatrizes de vandalismo nas paredes. Mas nada era comparável à maior diferença de todas: o fato de o Sacerdote não ser um Sacerdote.

Armas de fogo cercam o palanque, apontadas em todas as direções, nas mãos dos soldados da guarda com seus rostos hermeticamente escondidos pelos capacetes.

Helena, elegantemente ereta em um vestido cinza com detalhes em ouro, desviava os olhos discretamente através deles, provavelmente procurando pelo Surdo que a mataria sem aviso prévio. Já passaram três dias. Eles não seriam clementes por tanto tempo.

Pandora fecha as mãos em punho, o suor frio que escorre entre seus dedos pingando sobre o chão de mármore gasto. Ela mantém o rosto fixado à frente, embora tenha também a certeza de que uma ou mais armas devem estar apontadas em sua direção.

Uma arma dos Surdos, sem dúvida, e talvez também outra, se Helena estiver certa.

Mas olhar ao redor e procurar pelas armas seria inútil. Balas são mais velozes que os olhos, e ela jamais seria rápida o bastante para se proteger. Nem mesmo Helena, por mais que continuasse a correr os olhos incessantemente. De que adiantaria saber de onde veio o tiro que te matou? Seria melhor morrer sem passar pelo desgosto de ver o rosto sorridente de seu assassino.

As portas do Templo se abrem, e o Sacerdote caminha para o interior, deixando as costas vulneráveis para uma legião de inimigos. Os soldados da guarda devem estar acobertando sua segurança, a política dos olhos fechados diante do Templo já havia sido abandonada há muito, ultrapassada por questões de praticidade. Mesmo assim, se um deles fosse um Surdo infiltrado, ou se o Palácio realmente a quisesse morta, nem todos os soldados do mundo poderiam protegê-la antes que um tiro perfurasse suas costas. Poderiam acertar o atirador depois, claro. Mas só depois que ela já estivesse caída sobre o chão frio, sangrando, o que não seria de muita valia.

Quando um estalo eclode em suas costas, ela salta alguns centímetros, a dor do projétil imaginário machucando seu peito antes que sua mente tome as rédeas da realidade de novo e lhe diga com certeza que foi apenas o som das portas se fechando, e não um disparo.

Apertando o coração acelerado entre os dedos, ela olha ao redor, retorcendo o nariz.

A lei dos olhos fechados foi revogada, mas a lei da particularidade do Templo não. Somente o Sacerdote podia entrar ali, e, sendo assim, somente o Sacerdote poderia se encarregar de remover os escombros e o lixo que se acumulavam desde a rebelião dos Surdos.

Os sinais de depredação do lado externo não eram nada se comparados ao interior. Havia pedras caídas, móveis de madeira queimados, sacos de entulho e outras dezenas de materiais que ela não gostaria de checar para descobrir o que eram.

O cheiro desagradável a atinge, uma atmosfera mista de decomposição e poeira. Mas o pior certamente eram as ameaças pintadas nas paredes e no chão, contraditórias entre si, que atraiam seus olhos a cada Audição. Era impossível ignorar as letras espalhadas por todos os cantos:

O TEMPLO DAS MENTIRAS!

NÓS ASSASSINAMOS A VOZ!

O ÚLTIMO AUXILIADOR MORRE HOJE!

ARRANQUEM AS ORELHAS DE TODOS ELES!

E aquela outra frase, tão infantil, mas que a assustava mais que todas as outras:

SE VOCÊ ESTÁ LENDO ISSO, SAIBA QUE VOU TE MATAR.

Pandora fecha os olhos, sacudindo a cabeça na tentativa de afastar o terror que a consome. O que mais desejava era limpar aquele lugar ela mesma, remover os escombros, limpar as paredes, jogar fora o lixo que escorria em  líquidos gosmentos. Mas sabia que sozinha seria incapaz de organizar o Templo, e não poderia contar com ajuda. Então se resignava a tolerar os minutos de terror que a sufocavam todas as vezes que entrava ali, fingindo ouvir uma voz em quem nunca havia acreditado totalmente, e que também não faria diferença alguma, já que era Camilo quem entregava as mensagens ao povo, de acordo com a necessidade atual do Palácio, ele explicava.

Ansiosa para ir embora, lê as ameaças mais uma vez, parando os olhos repentinamente em um detalhe que não estava ali na última Audição.

Se aproxima, tocando o pedaço de papel com os pés antes de se abaixar para pegá-lo, sua cor branca como o leite se destacando contra os outros papeis amarelados que se acumulam com o lixo. O que quer que fosse, era recente.

Com os dedos já trêmulos, ela vira a folha de papel, lendo a inscrição em letras grandes e claras:

CONFIE NELA. NÃO CONFIE NELE.

Abaixo, em letras menores, uma única identificação:

CÉRBERO.

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora