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Com o sol a pino, Helena arrasta para fora o lençol contendo os restos mortais. As roupas e a proteção da casa de madeira, além do sal que havia se acumulado depois da maré alta, haviam preservado os ossos razoavelmente bem. Assim que os tocou, porém, muitos se descolaram e esfarelaram sob seus dedos. O que havia conseguido coletar ocupava um espaço minúsculo dentro do lençol. Era conveniente, já que o buraco que Pandora havia cavado até então não seria capaz de abrigar uma carga muito maior.

- Você acha que eu devia dizer alguma coisa? – Pandora questiona, ainda com uma expressão dormente.

- Pra quê? Ela não vai ouvir nada.

A garota acena enquanto Helena usa a pá para recolocar a areia em seu lugar original.

- Você acha que ela está em algum lugar melhor agora? – pergunta, contendo uma lágrima.

- Um lugar melhor... Como o Paraíso? – ela para por um instante, afundando a pá na areia – Surdos não acreditam nessas coisas, você sabe. Seus pais não acreditavam também. Alma, espírito, acho que tudo se resume a memórias. Eles vivem na sua cabeça. – Helena se volta para vê-la – Sua cabeça é um lugar melhor, Pandora?

- Eu acho que não...

- Então não se preocupe, um dia ela também vai ser só memória, e estaremos todos livres. Qualquer lugar é melhor que nosso mundo, agora.

Quando está terminado, as duas se lavam na água fria do mar, livrando-se do suor e da areia que se colam em suas peles.

Com a cabana livre de visões indesejadas, elas retornam, vasculhando as prateleiras e gavetas em busca de itens úteis. Encontram algumas peças de roupa razoavelmente conservadas num dos armários. Pandora as veste com alívio depois de passar os últimos dois dias caminhando seminua, sem se importar com o forte cheiro de bolor. Lavar aquelas roupas poderia terminar de dissolvê-las.

Sombras escuras correm pela praia, anunciando a proximidade de uma tempestade. De comum acordo, as duas limpam o máximo que podem da cabana até torná-la habitável. Seria melhor ter um teto podre do que teto nenhum durante a madrugada chuvosa.

- O que você acha que deveríamos fazer agora? – Pandora diz, puxando uma placa de livros embolorados que se grudaram uns aos outros por anos. Ela tenta descolar as capas, rasgando páginas úmidas. Desistindo, lança todo o conteúdo sobre o chão.

- Eu sei lá, o que você quer fazer agora?

- Eu não sei.

Outro baque surge quando Helena derruba vários objetos de um armário. Talheres enferrujados e alguns poucos copos de vidro tilintam pelo assoalho.

- Mas que beleza! – Pandora atira a vassoura contra a parede – Você quer esperar eu limpar mais uma vez pra sujar de novo?!

- Não podemos ficar aqui, - Helena resmunga, chutando com a ponta dos pés os cacos de vidro mais próximos – sua casa está caindo aos pedaços, e eu não duvido que o teto desabe em cima de nós na próxima ventania. Vamos ter que procurar outro lugar. Ei! Olhe pra isso!

Mudando completamente o tom de voz, ela se abaixa para pegar um dos objetos caídos. Seu rosto se expande com devoção ao estender a lâmina brilhante, as palmas de suas mãos mal ousando tocar o metal.

Pandora olha por cima do ombro.

- Essa era a adaga que meu pai deu para minha mãe. Nada demais.

- Nada demais?! Como você tem a audácia de dizer isso?! Você não sabe que lâmina é essa?!

- É só uma coisa velha. – Pandora murmura, sem dar importância.

Helena permanece fascinada, correndo os dedos suavemente pela extensão metálica.

Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionDonde viven las historias. Descúbrelo ahora