Capítulo 1

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O cheiro de sangue, que antes passava despercebido, agora é infernal. O odor de uma batalha não é, nem nunca foi, agradável, mas contra eles era insuportável. A maldição do sangue. Cada um deles tinha para nos prejudicar na guerra. A magia daquelas pessoas mortas nos punindo por termos tirado sua vida, com um cheiro de ferro e carniça preenchendo os pulmões e enjoando cada um dos nossos soldados. Mas isso não me impediu, não me fez nem hesitar em arrancar a cabeça de todos os inimigos à minha frente.

Não eram muitos, mas eram suficientes. O simples fato de terem magia era uma vantagem indescritível contra nosso exército. O que nos fazia permanecer lutando era a quantidade, nosso exército humano era grande o bastante para começar uma guerra, grande o bastante para ganhar. Eu fui treinada a vida inteira para isso, para matar, e não iria desapontar minha família.

Além do odor, a multidão era sufocante. Porém, eu conseguia deixar um bom círculo vazio à minha volta. Isso quando eu não estava deslizando por entre as pessoas como uma cobra, ágil e letal, abrindo caminho até os meus alvos determinados. Exatamente como eu fazia agora. Já tínhamos desenvolvido vários métodos para nos defender da magia dos Elementais, mas nada havia funcionado como esse veneno. A fumaça que jogamos no campo de batalha tirava todos seus poderes, era provisório para os que sobrevivessem.

Minha espada, que poderia cortar até o vento, atravessou um, dois, e depois três inimigos. A lama onde eles caíram espirrou em meus sapatos e o sangue dos golpes em meu rosto. Já era difícil franzir a testa com todo aquele líquido seco em mim, se misturando com o fresco. Eu chutava, arrancava cabeças, e abria caminho ao general. Meu alvo. O tamanho dele sugeria que não era alguém que precisava de proteção, mas as pessoas o defendiam mesmo assim. Todos pareciam lutar com unhas e dentes para proteger aquele homem e eu percebia, percebia porque a cada passo ficava mais difícil dar outro. O general parecia tão perto, mas sempre que eu traçava um plano para chegar nele, Elementais de todas as idades apareciam para me impedir.

Meu corpo protestou, mas eu não me cansava tão rápido. Golpes eram trocados até eu conseguir acertá-los. Até os ver caindo, e deixar que eles aprendessem o quão ruim é ser o chão de uma batalha. O general que lidava com suas próprias lutas matou todos à sua volta, meus soldados.

— Chega! Deixe-a passar! — o general rugiu, sua voz grossa quase inaudível em meio aos sons da guerra.

Todos recuaram por um momento, um caminho foi aberto, e por um segundo achei que minha luta seria um espetáculo. Mas aquilo é guerra, e ela não para por ninguém. Nem os gritos, nem as mortes cessaram. Alguns passos para o lado, e uma óbvia angústia dos soldados foi tudo que aconteceu.

Minha respiração estava pesada como a do general. Parecia que naqueles poucos segundos que nos encaramos meu corpo começou a desacelerar, a pedir por uma pausa. Não durou muito. Foi só me deparar com o olhar de pura raiva do brutamonte à minha frente para a adrenalina tomar conta. Havia fogo naqueles olhos amarelos, um fogo que parecia calmo, mas se espalhava rápido como um trovão. Eu não tinha dúvidas do poder do general.

Os gritos de guerra dos dois deram início à luta. As espadas se chocaram e os meus braços, já doloridos, jamais haviam sentido tamanha força. Cambaleei alguns passos para trás e logo me recompus. Desviei de um ataque que tiraria minha cabeça, e tentei aproveitar para dar um leve golpe na lateral do general, mas ele foi rápido demais e não deixou um espaço aberto para eu cortar. Era como uma dança e, como nos bailes, eu queria que acabasse o mais rápido possível. Então ataquei. Golpeei uma, duas, três, e quatro vezes. Na quinta consegui raspar no braço musculoso do homem. Ele fez o mesmo, mas não tirou uma gota de sangue minha. A batalha começou a ficar cansativa, eu não ia aguentar me defender por tanto tempo, e nem precisei, pois uma explosão nos jogou para longe.

Minha visão estava desfocada, meus ouvidos ecoavam um apito horrível, e o desespero tomou conta.

Preciso levantar. Preciso levantar. Preciso levantar.

A voz do meu pai ressoou pela minha mente, Vulnerabilidade na vida é fraqueza, na guerra é morte. Vulnerável, era como eu estava. O mundo dava voltas e voltas e lentamente os borrões começaram a fazer sentido. A imagem voltou para o seu lugar, se encaixou perfeitamente. Pessoas se levantando com dificuldade, pessoas mortas, o general se rastejando. Ele se arrastava como se aquela espada fosse a última luz acesa na escuridão, e eu percebi que tinha que fazer o mesmo, pois aquela também era a minha única chance. A diferença entre nós é que eu não tinha forças, e pela primeira vez naquele dia considerei a possibilidade de morrer. Como uma fraca, rastejando na lama. Eu sabia que meu pai não iria ao meu velório, mesmo se todos em Keamanan fossem.

Algo começou a fervilhar nos meus ossos, minhas mãos começaram a formigar. Era uma fagulha pequena, mas estava lá. Há quanto tempo a batalha tinha começado?

Não ouse!

Corpo traiçoeiro, querendo tornar minha vergonha em algo bem, bem pior. A lama pastosa grudava, virando uma nova camada de pele e se escondendo em minhas unhas com medo do que estava por vir. As pontas dos meus dedos não chegam nem perto do cabo de minha espada, Raio de Sol. Nesse ponto a batalha recomeçou ao meu redor, e o general já está em pé com sua arma. Ele mancou até mim, poucos passos até os joelhos cederem bem ao meu lado. Me viro de barriga para cima, me recusando a imaginar a espada em minhas costas. Vejo a lâmina brilhar, um pontinho de luz em meio ao sangue e sujeira da arma.

Queria ver meus momentos bons, queria que minhas memórias me lembrassem que tive uma vida boa. Morrer em algum tipo de paz na guerra. Só queria saber que tudo isso valeu a pena. Mas nada aconteceu, nenhuma memória. Nada. Nem a lâmina me atravessou. Ela nem encostou em mim, como se o ar não desejasse minha morte. Pois foi isso que aconteceu. O general me olhava com olhos arregalados, e o ar segurava a espada no ar a centímetros do meu corpo. A partir daí foi puro instinto. A faca escondida em minha bota estava na minha mão, e depois encravada no pescoço do homem. Agora eu estava em cima, e já não era aquela que desejava por memórias. Pensei em dizer que não era pessoal, mas decidi não mentir para os mortos. Me deixei ver a vida esvaindo e as chamas virarem cinzas, não por me dar algum tipo de satisfação, mas porque a estátua de mármore que meu corpo tinha se tornado não me permitia fazer outra coisa. Minha cabeça jogava um pensamento atrás do outro até que gritos de lamento surgiram de todos os lados. Percebi o motivo de tanta proteção, o general era simplesmente querido. Por todos.

Levante! Era o que gritava na minha cabeça e obedeci. Peguei minha espada lentamente. Muito, muito, muito lentamente. O que estava acontecendo comigo? Estava falhando em todos os meus treinamentos nesses poucos segundos. A lerdeza, a falta de foco e de objetivo. Concentre-se, minha mente rosnava. Podia sentir as pessoas me rondando, exigindo vingança. E de repente eles sumiram. Todos os Elementais desapareceram, levando junto seu general morto. Recuaram. Já tinha visto eles desaparecerem várias vezes, porém nunca desse jeito. Todos se foram de uma vez. Olhei em volta e vi os soldados dando um suspiro de alívio, eu também dava. Não que fossemos perder, mas muitos ainda iriam morrer.

Estava cansada demais para entender tudo o que tinha acontecido, não sabia nem como eu chegaria para o acampamento de volta, nem para o palácio. Um passo depois do outro, algo sussurrou. Era o que eu sempre fazia.

Comecei a me virar, minhas costas carregando cada alma que eu tinha tirado. Os músculos ardiam, mas algo me parou. Nenhum dos soldados parecia ter notado, pois todos continuaram seu caminho sem nem olhar para trás, desviando dos mortos, evitando a devastação. Mas eu olhei para trás. Não tinha escolha, minha nuca parecia queimar com ferro de ponta vermelha e laranja. E a vários metros de distância, onde a lama acabava e a grama verde crescia, estava a líder dos Elementais, Rainha Aurora. O vestido dela parecia ser leve como uma pena, o tecido era branco e destacava a sua pele escura. Camadas dançavam ao vento, dando-lhe a imagem da própria Kiara, a Deusa criadora. Explicava o porquê de todos terem desaparecido ao mesmo tempo, e explicava o porquê dos meus pulmões pararem. Ela podia me matar agora mesmo, porém ela apenas observava. Não deveria, mas eu conseguia ver seu rosto e este era de pura desconfiança. Será que ela tinha visto? Se ela soubesse, aquele era o meu fim. Se alguém, qualquer um, tivesse visto, já teria consequências terríveis, nem saberia dizer o que aconteceria se justo a rainha inimiga descobrisse. Ela simplesmente desapareceu e eu andei determinadamente para o acampamento. Tinha muito no que pensar e nenhuma energia para isso. Não tinha energia para nada disso.

Coroa de CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora