Capítulo 2

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Na tenda, eu era a própria contorcionista na frente do espelho, tentando achar o ângulo certo para cuidar de minhas feridas. Uma nas costas, especificamente. A da perna era pior, mas isso a deixava em último da fila. Quanto pior, mais devagar se curava. O que queria dizer que eu precisava desinfetar as demais antes que infeccionassem, e a ferida se fechasse. Outra vantagem dos Elementais: o processo de cura é bem mais rápido do que o dos humanos. E eu até apreciaria essa habilidade se não tivesse que tratar de todos os meus machucados sozinha. Nenhum curandeiro nunca. Ninguém podia saber que eu tinha essas habilidades. E isso deixava cicatrizes espalhadas pelo meu corpo como prova do meu trabalho brutesco. Não importa quanto tempo passe, nunca conseguiria costurar meu corpo e lidar com a dor ao mesmo tempo, essa não era a batalha que eu iria lutar. Hoje não seria diferente. Rangendo os dentes, passava a agulha quente pela minha perna, até chegar ao final da ferida, já imaginando como seria o formato da cicatriz. Se eu tivesse que olhar pelo lado positivo, ao menos eu não tinha a marca dos Elementais em nenhum lugar do meu corpo. Todos eles tinham, era como uma tatuagem em lugares aleatórios. Não era fácil esconder aquela marca, sendo o principal motivo que muitos dos Elementais eram identificados, e eu não.

Ao terminar, meu corpo se afundou na cadeira, meus olhos se fixaram na pequena bacia de água e sangue à minha frente. Minha respiração pesada, apenas comprovando que estava na minha cabeça. Eu estava tão, tão cansada era o que eu repetia para mim mesma como uma oração. Cansada de tudo. Mesmo assim, minha cabeça me levava de volta para a batalha. De volta para aquele último momento. Se alguém tivesse visto... Era possível, estava claro que o general ia me matar, nada estava o impedindo. Apenas meus poderes. Lembrei dos olhos amarelos se arregalando. Acho que até os meus se arregalaram. A única coisa que não deixava o desespero tomar conta é saber que tudo é confuso na guerra, ninguém tem tempo para ficar reparando em um detalhe como aquele. A faca estava a centímetros do meu corpo, podem acreditar que foi minha armadura, algum colar, qualquer coisa menos poderes. Ou talvez alguém tenha visto, prestado muita atenção. Talvez eu perca minha cabeça no momento que pisar no palácio.

Escutei passos muito antes de entrarem em minha tenda, mas foi só quando ele estava bem perto que deixei meus pensamentos voltarem à realidade. Um beijo em meu rosto me fez olhar para ele. Mathias. Seus olhos escuros brilhavam, refletindo a luz da vela sobre a mesa.

— Você lutou como Dandara hoje — Mathias murmurou, seus beijos traçando um caminho vazio e seco em meu pescoço.

— Não lutei não — Minha voz não era muito mais que um sussurro. — No final da batalha foi como se tivesse esquecido todo meu treinamento.

Me arrependi de abrir a boca na hora. Ele nem devia ter me visto, só queria me paparicar, me comparando com a Deusa da Guerra.

Ele não liga.

Era algo que me fazia bem lembrar.

Mathias era carinhoso e isso, às vezes, fazia eu me sentir mal por usar ele. Só que ele amava a Princesa Calynn. Ou poderia dizer, Mathias amava a Princesa, Calynn era só um detalhe. Ele queria a coroa, e eu... eu não queria ficar sozinha. Então não me sentia mal, ele também não parecia. Também não vou negar que foi um longo processo para chegar na nossa situação atual. Meu coração pode ou não ter se partido nessa história, mas o que importa é que hoje somos iguais, e nossos beijos são igualmente frios.

Quando meus lábios encontraram os deles, eu me permiti me entregar aquela sensação. Quando o beijo se aprofundou, me deixei aproveitar, sabendo que logo ia acabar. Pois quando Mathias encostou em minha blusa, eu me afastei.

— Estou cansada — sussurrei.

Ele parou. Seus olhos se abriram e, como se lembrasse de algo, se suavizaram.

Coroa de CinzasWhere stories live. Discover now