03| Fogo

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C A P Í T U L O   03

FOGO

Ter desviado o olhar para o ecrã do meu telemóvel, foi o suficiente para quando voltei a pousar o olhar na estrada, ver um carro quase a bater de frente no meu. Só me lembro de ter feito um desvio completamente fora de lei e de ter ouvido uma buzinadela por parte do condutor que estava no outro carro. Senti um pouco, mas só um pouco, o meu coração acelerar com todo o cenário, e fui obrigado a parar na berma da estrada para respirar um pouco. Procurei no porta luvas por um maço de tabaco, e no meio de tanta tralha, encontrei um. Tirei rapidamente um cigarro e acendi-o, voltando à estrada logo a seguir.

A noite estava mais escura do que o normal, e se não fosse a lua cheia a iluminar, talvez fosse difícil circular sobre tal escuridão.

Com o vidro do carro aberto consegui ouvir o som dos mochos e de outros animais, o que no seu entender mais absurdo, dava um ar assustador à noite. Mas, que na verdade, para mim só me fazia agradecer por isso. Sempre fugi ao dia. Desde que o Matt me levou com ele que eu passei a odiar o dia, porque foi durante o dia que ele me comprou aos meus pais. Por isso, eu sempre tentei fazer toda a minha vida à noite. Daí treinar a manhã toda e dormir a tarde toda. Se bem que foi de noite que aquilo aconteceu, exatamente na floresta. E mesmo que só me trouxesse raiva, eu nunca consegui deixar de lá ir.

Nos primeiros seis meses eu ia para lá para tentar encontrar o corpo. Mas acho que foi estúpido, porque quando aquilo aconteceu, a polícia chegou logo. O que foi curioso, porque como é que alguém podia ter ouvido alguma coisa se nós estávamos na floresta? Não havia casas, ninguém lá estava. Talvez alguém tivesse visto. Mas se alguém me viu, porque é que não denunciou o caso?

Assim que cheguei à estrada da floresta, estacionei e saí, ainda com o cigarro aceso. Levei comigo o maço de tabaco e o isqueiro. Depois peguei no telemóvel e liguei a lanterna. Comecei a caminhar pelo caminho criado e a certa altura parei no mesmo local onde tudo tinha acontecido. Apontei com a luz para lá e consegui ver a enorme mancha castanha. Mesmo depois de dois anos, ainda estavam proeminentes as marcas.

Com toda aquela imagem mesmo à minha frente, uma raiva começou a crescer dentro de mim. Atirei furiosamente o cigarro para o chão e apertei a mão que anteriormente o estava a segurar, com força. Soltei um suspiro pesado, e depois decidi-me sobre o que iria fazer.

Desliguei a luz da lanterna e depois de me habituar ao escuro e de ter a certeza que a luz da lua me iria iluminar de forma a que eu pudesse fazer tudo como queria, comecei a recolher alguns paus que estavam largados no chão. À medida que os ia apanhando, atirei-os todos para a mancha no chão. Quando consegui uma quantidade razoável, peguei em meia dúzia de folhas e baixei-me junto da madeira no chão. Tirei o meu isqueiro e comecei a acende-lo repetidamente, apenas par ter certezas do que iria fazer a seguir.

É a única maneira de nunca mais me lembrar disto sempre que venho cá. Bem, vou sempre lembrar-me do que aconteceu, mas ao menos não me dá tanta vontade de destruir tudo à minha volta. Nem vontade de gritar na cara do Matt que a culpa foi toda dele. Que se não fossem as merdas dos negócios ilegais, eu nunca teria de ter feito aquilo. Pensei e sem voltar a fazê-lo, acendi as folhas e juntei-as à lenha no chão. Ao início o lume não pegou, mas depois de mais uma tentativa, começou a arder demasiado bem.

- Eu só espero, onde quer que estejas, que saibas que eu não queria ter feito aquela merda. – olhei para cima e encarei o céu escuro. – Foi o Matt que me obrigou, ou eles matavam a minha irmã. – a raiva voltou a crescer, e isso fez-se refletir na minha voz. – Eu odeio o Matt, odeio-me, odeio tudo, odeio toda a gente. Podiam todos morrer que não iam fazer cá falta nenhuma.

Callous | h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora