25| Barulhos

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C A P Í T U L O 25

BARULHOS

O ser humano é terrivelmente egoísta e então quando faz algo de mal e tem consciência disso, continua, apenas se for algo bom, que lhe dê vida. Talvez lhe dê vida só a ele, mas não é isso que ele procura? Alguma coisa que não deixe a chama apagar e que faça dele a pessoa mais forte de todas, que se consiga segurar de pé, mesmo que esteja a deixar os outros cair, sem possibilidades para se levantarem, ficando presos ao chão para os superiores os calcarem.

Foi isso que aconteceu com a Ava. Ela fez com que eu descobrisse coisas em mim que eu tinha eliminado apenas com o pensamento. Ela fez com que o meu estado mais vulnerável desperta-se. Com que as minhas necessidades viessem ao de cima. Mas sobretudo com que eu ficasse com uma enorme necessidade de a ter só para mim, sem partilha-la. Talvez eu não me tivesse apercebido, mas foi naquele mês de dezembro de 2014, um mês cheio de neve e chuva, um mês completamente gelado que eu caí realmente no mundo dela, ou como ela dizia, no inferno dela.

A maioria aconteceu de forma inconsciente, mas ao mesmo tempo era como se eu estivesse a levar as coisas a acontecerem. Isso fez com que eu roubasse a liberdade a que ela tinha direito, porque eu quis que ela ficasse apenas ao meu lado. E isso foi mau, muito mau, porque depois desenvolveram-se consequências pesadas e graves. Consequências que eu mereci.

Beijar os lábios dela era como estar no paraíso, ou talvez ela fosse o meu paraíso. Algo apaziguador, que me livrava da dor e de pensamentos menos bons. Então eu não separei os meus dos dela. Por vezes deixava que a minha testa se apoia-se na dela, e mesmo que eu não estivesse a investir nos seus lábios, eu deixava os meus colados aos dela. Ela parecia gostar, porque não protestou ou se afastou. Isso deixou-me de certo modo confortável, porque mostrava que não era apenas eu que queria que aquilo acontecesse, mas ela também.

- Tenho frio. – queixou-se num tom de voz muito baixo. No entanto o silêncio no nosso espaço fazia com que fosse permitido ouvir qualquer coisa.

Levantei-me e fui novamente ao armário, tirando de lá um cobertor grande, pesado e quente. Voltei para o sofá e antes de me sentar abri-o.

- Levanta-te. – pedi-lhe e ela fê-lo. – Agora junta-te a mim. – o seu corpo colou-se ao meu e eu enrolei o cobertor à nossa volta, para depois nos sentarmos os dois a seguir. Porém senti o corpo dela tremer. Peguei nas suas mãos e rodei-as com as minhas. Ela sorriu-me e eu fiz-lhe o mesmo.

Era estranho. Era muito estranho eu agir da maneira que agia com ela. Mas, era tão bom e era tão diferente. E não, a nossa história não se baseou num facto cliché onde ela me mudou e tornou numa pessoa melhor, porque realmente eu nunca consegui e talvez com a aproximação dela eu me tenha tornado numa pessoa ainda pior, porque fiz coisas que comprometeram a minha vida até ao fim. No entanto na presença dela eu conseguia perceber que afinal de contas ainda havia alguma esperança em mim. Talvez isso tenha sido resultado da minha cobardia, mas realmente havia.

E não, não houve uma paixão ardente que fez com que caíssemos nos braços um do outro. Ela era a Ava e eu era o Harry. Por muito que negássemos, havia sempre alguma coisa que nos ligava. Porém ela era um pequeno anjo e eu um grande monstro.

Podia assegurar que a minha mente estava a ser controlada por alguma entidade superior, porque afinal de contas, eu nunca tivera agido daquela maneira para com ninguém, absolutamente ninguém. Só que eu sabia que ela precisava daquilo, mas acima de tudo eu, eu é que a precisava de sentir e fazer com que ela me deixasse nadar nas profundezas dos seus oceanos gelados, que apesar de estarem numa batalha constante entre o outro, onde as ondas se tornavam agitadas, era onde eu me sentia em paz. Mesmo que eu lhe estivesse a esconder a maior verdade da vida dela.

- Eu sei que já é tarde, mas parabéns. – acabei por dizer depois dela encostar a cabeça dela no meu peito.

- Obrigada. – era estranho ouvir a voz dela tão suave, assim como devia de ser estranho para ela ouvir a minha calma e sem réstia de revolta. – Foi simpático da tua parte teres lembrado.

Ri-me, com vontade. – Eu só não me lembro daquilo que eu não quero.

Seria mesmo verdade? Provavelmente não, porque eu lembrava-me de muitas coisas que não queria, que me perseguiam e atormentavam profundamente.

- Então... – ela hesitou. – Tu vais lembrar-te disto?

- Eventualmente. – não queria criar-lhe esperanças.

Um pequeno silêncio apareceu no nosso meio. Respirei fundo para depois ela voltar a falar.

- Eventualmente significa propriamente o quê?

- Que talvez me vá lembrar. – não queria criar expectativas, especialmente por ser tudo tão recente. – E tu? – o meu lado curioso estava desperto.

- Só me lembro daquilo que quero voltar a repetir.

***

Estava um pouco desconfortável e isso foi talvez o motivo para ter acordado. Quando abri os olhos fui confrontado com a luz do candeeiro. A Ava ainda estava encostada a mim e um braço dela já me estava a abraçar. Por muito que quisesse sair daquele aperto era impossível porque ela estava realmente a exercer muita força em mim.

- Ava. – chamei baixo por ela, mas não resultou. – Ava. – aumentei o volume da minha voz, o que mostrou resultados. – Eu preciso de sair.

O corpo dela acabou por se mexer. Finalmente tirou a não dela e parte do seu corpo de cima de mim. Os seus olhos estavam terrivelmente sonolentos e se fosse noutra circunstância ela provavelmente tinha-me dado um estalo ou algo parecido por a ter acordado.

- Vais embora? – reparei que ela estava receosa quando perguntou. Queria sorrir por isso, porém mantive-me normal.

- Não, vou só à casa de banho.

Acabei por me levantar e depois fui até à pequena casa de banho. Quando voltei ela estava sentada, com os cotovelos em cima dos joelhos e a cara nas mãos, talvez por estar com demasiado sono.

- São seis da manhã. – ela disse. – Estou cheia de sono.

- Podes voltar a dormir.

Quando o disse ia voltar a sentar-me à beira dela, mas um enorme barulho do lado de fora fez com que os meus movimentos parassem. Juntei as sobrancelhas.

- O que foi isto? – a Ava logo se levantou, juntando-se a mim. Ela estava com medo, os olhos dela mostravam isso na perfeição.

- Não sei. – olhei para ela. – Mas eu vou ver.

Peguei numa lanterna que estava em cima de uma mesa e depois abri a porta muito devagar, apontando a luz para o escuro. Não vi nada a não ser o meu carro e as árvores. Então saí e andei um pouco para ver se havia algo suspeito, mas nada. Decidi andar á volta do carro, apontando a luz para os pneus. Até que...

- Que merda é esta? – disse baixo baixando-me.

O pneu estava furado e dava para perceber que tinha sido alguém a fazê-lo. Acabei por me levantar, não estivesse alguém por perto.

- O que era? – ela perguntou enquanto se aproximava.

- Não sei. – aquilo estava a deixar-me demasiado intrigado para poder raciocinar direito. Havia duas hipóteses, que eu não queria acreditar. – Mas alguém furou o pneu do meu carro.

- O quê? – vi o pânico instalar-se na cara dela. – E se tem a ver alguma coisa com o que me aconteceu? E se andam atrás de mim outra vez?

- Tem calma! – aproximei-me mais dela e segurei-lhe nas mãos. – Eu estou aqui.

- Mas eu tenho medo.

- Não tenhas. Eu estou aqui e não vou deixar que nada te aconteça. Eu prometo!






Callous | h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora