• Vinte e Quatro

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Alex

Eu cresci numa família que usava da religião para mascarar muitas de suas opiniões mesquinhas e maldosas. Eles fingiam que eram perfeitos e que seguiam todos os preceitos de Deus, mas quando estávamos dentro de casa a coisa era muito diferente. Chegava a ser ridículo, porque se eles eram tão fiéis a um Deus de amor, porque nunca me amaram? Porque nunca foram bondosos com o filho que tiveram?

Isso eu certamente nunca irei entender.

Contudo, me vejo pensando sobre o assunto quando passo pelas portas da igreja mais famosa da cidade. A igreja fica por trás da praça principal e é bastante frequentada, por isso pareceu correto marcar com a Fanny justamente neste lugar.
Dentre tantos turistas, conseguíamos nos camuflar um pouco.

— Não deveria estar aqui, Alex! — Ela exclama com o rosto ligeiramente de lado assim que me sento no banco da fileira de trás. — Na verdade, o erro também foi meu. Eu não tinha que ter aceitado esse encontro. Você ainda está ferido, o seu braço...

— Está indo bem. — Olho sorrateiramente para a tipoia que o médico me recomendou usar. — Além do mais você achou mesmo que eu ficaria em paz sem saber o que tinha acontecido após a nossa saída daquele beco? Fanny, eu quase enlouqueci de tanto pensar.

— Você mal me conhece...

Seu tom de voz é quase como um sussurro cansado. Seus ombros se curvam um pouco e percebo que apesar de se mostrar uma mulher forte, Fanny é tão frágil quanto um anima acuado.
Dá para sentir o medo que exala de cada gesto que faz, como olha em volta, como se sobressalta quando alguém passa pelo banco onde está sentada.

Talvez eu realmente não a conheça há tempos e não saiba de toda a sua história, mas não sou exatamente conhecido por ser um cara que faz tudo correto.
Já fiz tanta loucura na vida que não me custa fazer mais uma, até porque, dessa vez, há um sentimento muito forte me impulsionando a isso.

— Não confia em mim?

— Bom, se você fizer uma retrospectiva da minha história, fica difícil confiar em alguém, principalmente se for um homem.

Assinto mesmo que ela não possa ver.

— Eu te entendo.

— Não, Alex. Eu acho que não entende. — Fanny se vira deliberadamente pra mim. Seus cabelos escuros caem como uma cortina negra ao redor de seu rosto magro. — Eu vim para a Itália anos atrás porque o meu pai me agredia absurdamente. Cresci numa família péssima, namorei um cara idiota que quando não estava fumando maconha, estava me enchendo de porrada. E adivinha? Quando eu engravidei, ele disse que ia me matar junto com a criança assim que ela nascesse, justamente porque eu não quis abortar.

— Fanny...

— Daí, burra do jeito que eu era, acreditei em um idiota que me ofereceu emprego em outro país e meti a cara para vir para cá. Simplesmente fugi. Não avisei nada a ninguém, confiei cegamente e quando cheguei aqui, cai nas garras do monstro do Vincenzo! E sabe qual foi o meu primeiro trabalho pra ele? O desgraçado me fez ir para a cama com um cara nojento e repulsivo que não só me tratou como lixo, mas também me deixou tão machucada que eu perdi o meu bebê. — Ela para e funga, desviando o olhar. — Portanto, me perdoe se não posso simplesmente confiar em você só porque o meu coração pede isso. Mas é que eu parei de ouvi-lo há muitos anos.

Eu não era ingênuo ao ponto de não imaginar que algo terrível tivesse acontecido, mas nunca cogitei que fosse nessa dimensão tão odiosa. E enquanto ela fala as barbaridades que sofreu, sou continuamente golpeado na boca do estômago pela minha ignorância e intensidade. Fui um imbecil ao cogitar que as coisas fossem minimamente fáceis, mesmo que numa escala pequena.

Fuego En La Sangre - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora