29| Zombies

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Afirmar estar cansada seria um eufemismo, tendo em conta que eu não só me encontrava cansada fisicamente como psicologicamente. Tudo aquilo que eu tive de suportar durante todos estes anos estava agora a florescer. As rejeições, os comentários, os rumores acerca de mim e Michael, as acusações, os erros, as palavras que não foram ditas. Estava tudo a vir ao de cima, como uma boia submergida que entretanto ganhou forças para voltar à tona. Talvez esta fuga não tivesse sido a minha melhor ideia, até porque eu estava farta de todos os dramas que ultimamente têm acontecido à minha volta, contudo, esta raiva interior que se acumulou dentro de mim falou mais alto, impedindo-me de ignorar a situação. Queria gritar, queria explodir, queria bater na primeira pessoa que me aparecesse pela frente. Estava zangada com o mundo e, especialmente, zangada comigo própria. Nunca fui suficientemente forte para me impor, para defender uma posição. Michael fez com que eu mudasse, e disso, eu não estava nada arrependida.

Apesar de esta ser a minha terra natal, eu já não conseguia distinguir qualquer rua ou trilho por onde passasse. As casas pareciam todas iguais e, há medida que o tempo passava, tudo ficava mais frio e escuro. Só tinha a companhia de uma tartaruga, que, apesar de ser reconfortante, era um pouco inútil. Não havia carros nem pessoas, só fantasmas noturnos que enchiam o meu coração de medo. Encolhida nas sombras das árvores, lá ia eu, frágil e só.

"O que é que fazemos, Leo?", questionei o animal, esperando que uma resposta saísse da sua boca. Fitei a tartaruga por uns momentos, desiludida com o silêncio que me rodeava. Revirei os olhos e bufei, cansada. Doíam-me os pés e o meu corpo estava gelado. "Tenho medo.", solucei, limpando as lágrimas com as costas da mão.

Quando respirei fundo, voltei a caminhar, recuperando forças. Pelo menos, tinha de chegar a um sítio onde pudesse pernoitar. Não podia simplesmente fazer o caminho inverso e regressar a casa, com o rabinho entre as pernas. No entanto, a esta hora, já Elsa e Karen andariam à minha procura. Ou então não. Na verdade, não tenho bem a certeza. Elas provavelmente acharam que esta foi uma birra que eu fiz e, portanto, nem se deram ao trabalho de vir atrás de mim. Não me admiraria nada se assim fosse.

Depois de mais uns minutos a caminhar, os meus olhos iluminaram-se ao ver sinais de vida humana. Um sorriso enorme instalou-se nos meus lábios e, quase inconscientemente, abri os braços e corri na direção daquela praceta, onde várias lojas me mostravam as maravilhas da Revolução Industrial. Apesar de já ser um pouco tarde, havia uma loja de conveniência mesmo à minha frente, como se por obra do Espirito Santo aquele local estivesse destinado a ser encontrado pela minha pessoa. Quase derrubei um casal de namorados que passeava por ali, contudo, assustada com a possibilidade de a minha sorte se extinguir, avancei o mais rápido que pude até ao estabelecimento. Dei saltinhos na calçada de pedra e respirei fundo, lançando um enorme sorriso a Leo.

"Boa noite.", cumprimentei, adentrando na pequena loja. O empregado sorriu com desinteresse, continuando apoiado no balcão, a ler a sua revista de desporto. Apesar de ter sido praticamente ignorada por ele, continuei aos pulinhos, animada com a minha capacidade de orientação excelente, que nos havia levado até àquele túmulo de vida.

"Belas pantufas.", o rapaz tossiu forçosamente, continuando com os olhos presos à revista. Apeteceu-me mandá-lo para um sítio onde as vacas comem merda mas depois percebi que seria falta de educação e, como eu sou uma boa menina, decidi manter-me em silêncio, percorrendo os corredores daquela loja.

"Mas qual é o problema desta gente?", murmurei para comigo própria, lançando para dentro do cesto alguns pacotes de bolachas. Retirei do refrigerador algumas garrafas de água e peguei nalgumas barras energéticas. No entanto, o meu telemóvel vibrou nesse exato momento, e, aborrecida com a falta de oportunidade da pessoa que ousava importunar-me, olhei à minha volta. O empregadito (também conhecido como o Deus Grego mais grego da zona e arredores) olhou-me com cara de poucos amigos e, por momentos, achei que ele pudesse pensar que eu era uma ladra-assassina-fugitiva. Coisa que não era assim tão falsa. Sorri-lhe ironicamente, pousando o cesto no chão. Quando tirei o telemóvel do bolso, os meus olhos arregalaram-se.

Social Casualty ಌ m.cWhere stories live. Discover now