37| Inferno de Satanás

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Após três dias e duas noites pessimamente mal dormidas, chegara finalmente aquela tenebrosa segunda-feira que assombrava os meus pesadelos mais profundos desde que eu me lembro de existir nesta sociedade nojenta e incapacitada. É claro que, estando em plena maré de azar, as coisas nunca me poderiam correr bem e, prova disso, era o facto de ter Richard plantado à porta da casa de banho enquanto eu tentava escovar os meus dentes. Depois de regressar a casa, o clima que se instalou na nossa alegre e disfuncional família foi algo semelhante a um daqueles roteiros pirosos que se encontram numa sala de cinema, cheio de drama à mistura e silêncios constrangedores. Elsa e Karen deram-me o sermão das suas vidas e ameaçaram expulsar-me de casa se eu voltasse a armar-me em raptora-profissional-de-girafas-bailarinas. É claro que Liz não ficou com uma grande impressão minha e as duas mulheres sofreram ao ouvir os seus lamentos de mãe desesperada, e nem mesmo Michael se conseguiu safar dos castigos que as duas mulheres passaram horas a preparar. Eu fiquei encarregue das tarefas domésticas, tal qual Luke de avental cor-de-rosa, e Michael foi encarregue de desempenhar as funções mais pesadas, como arranjar o sistema de rega que já se encontrava avariado há mais de uma semana ou cortar a relva todos os dias. Dignos de uma cadeia militar, estes castigos começaram a parecer insignificantes sempre que os meus olhos se cruzavam com o rapaz de cabelo preto. As palavras que trocáramos (ou a falta delas) enchiam o meu peito de arrependimento, sobretudo por ter confessado o meu amor de forma tão inconsciente e imprevisível. Michael continuava a ignorar-me, tal como eu fazia, no entanto, eu sentia a necessidade de comunicar com ele, nem que fosse através de olhares esquivos que desabafassem o ódio que eu começava a nutrir pelas nossas mãezinhas zangadas. Para adicionar a este belo cocktail de drama familiar, Richard ainda não tinha tido um pingo de vergonha na cara e portanto continuava a rondar-nos, como um cachorrinho abandonado pulguento e malcheiroso. Haviam dois grandes motivos para a minha querida progenitora ainda não ter mandado o seu ex-marido embora (o primeiro: ela adora ver-me irritada com a presença do homem, e o segundo: Elsa, como cidadã responsável que é, tem o direito e a obrigação de deixar o homenzinho que me carregou nos seus testículos participar ativamente na minha educação – por outras palavras, a ruivinha queria livrar-se de mim e passar a batata quente ao desgraçado do meu pai) e, a apostar pela forma como a hostilidade entre os dois começava a atenuar, eu percebia que a ida de Rich lá para o monte de Judas não seria algo breve. Só mais um dia feliz nesta vida feliz.

Sendo eu a maior defensora de Satanás e seus aliados da força maléfica, não poderia estar mais dentro do lema dessa figura tão grandiosa e terrível. Os meus olhos raiados de sangue e as minhas bochechas inchadas e pontilhadas de pequenas borbulhas conferiam à minha imagem algo semelhante a horroroso e desleixado. Eu não tinha tido tempo para poder tomar um banho, porque, mais uma vez, a sorte esteve do lado do outro zé-ninguém e o meu despertador não tocou; a única coisa que eu podia fazer (honrando assim a espetacular figura do meu amigo Diabo) era amaldiçoar Michael por não conter na sua adorável e minúscula casa de banho algum produto cosmético que pudesse disfarçar as imperfeições do meu rosto. Mas não, o Michael é um macho latino. O Michael não pode usar essas coisas. Ide então arder nas águas do profundo inferno, amigo defensor da naturalidade.

"Cloe!" e claro, lá estava ele novamente a gritar o meu adorável nome. De cinco em cinco segundos, Richard abria a sua não-tão-linda-boca-nojenta e chamava-me, lançando pelo ar vocábulos como atrasada, escola, despacha-te. Mas claro que eu ignorava.

"CLOE ANNE MARIE!", caí de rabo no chão quando foi a vez de Elsa se fazer ouvir. Os meus ossos estalaram e eu juro que só Deus e os seus milagres me salvaram naquele instante, senão eu tinha mesmo batido com a cabeça na banheira e morrido com um traumatismo craniano. "ESTÁS FECHADA NESSA CASA DE BANHO HÁ ETERNIDADES! ESTAMOS TODOS À TUA ESPERA!"

Social Casualty ಌ m.cWhere stories live. Discover now