30| Vítima da sociedade

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O relógio do rádio do carro de Ashton marcava as duas e meia da manhã, enquanto uma balada dos anos oitenta preenchia o ambiente silencioso e as luzes dos candeeiros iluminavam o interior do veículo amplo. Estar sentada ao lado de um estranho, que outrora fora confundido com um zombie das trevas, era ligeiramente assustador, contudo, esta pitada de adrenalina fazia com que me mantivesse desperta e sem qualquer vestígio de sono. O carro avançava devagar pela estrada deserta e Ashton, apesar de parecer cansado, abanava a cabeça e movia os lábios consoante a música, que, muito honestamente, era a maior piroseira que eu alguma vez ouvira. A letra falava de um desgosto de amor e aquele era o tipo de música que uma alma destroçada ouviria num dia de chuva e, não estando a chover, eu só podia supor que o empregado-zombie-inofensivo sofrera um desgosto. Mas claro que eu não podia, nem devia, julgar as pessoas de uma forma tão superficial.

"Quando tu disseste que não tinhas casa estavas a usar uma metáfora ou a falar no sentido literal?", tentei a minha sorte, esperançosa de levar o silêncio para bem longe e iniciar ali uma profunda conversa acerca da vida do loiro.

Ashton parou de cantarolar, ficando somente a fitar a estrada de olhos semicerrados, com uma postura tensa e austera. Claro que naquele instante dei por mim a engolir em seco e a encolher-me, sabendo que teria ultrapassado os limites. Provavelmente devia ter-me mantido calada, reduzida à minha insignificância. Ashton olhou-me de esguelha.

"Não é justo fazeres-me perguntas quanto tu não respondes às minhas.", ele riu-se, mudando a estação de rádio. Uma música animada penetrou os meus ouvidos e, quase imediatamente, reconheci aquela banda de rock alternativo. Michael costumava ouvir tantas vezes aquela música. Quando estava alegre, quando estava deprimido, quando não tinha nada para fazer, quando me queria irritar. Quase me ri, sabendo que aquela melodia tinha agora muito mais significado do que eu alguma vez pensara ter.

"Pronto, tinhas razão.", suspirei, ignorando os meus últimos pensamentos. "Eu fugi de casa."

"Vês, não foi assim tão difícil admitir.", o rapaz puxou o seu cabelo para trás, sorrindo de uma forma divertida na minha direção. Revirei os olhos. "Mas conta-me... qual foi a razão da fuga?"

Cruzei os braços sobre o peito e virei a cabeça na direção da janela, observando a negridão do céu estrelado e a estrada que fugia de nós. Fiquei zonza nos primeiros segundos, fitando continuamente aquele rasto de linha branca que ficava esbatida na minha mente. Depois fechei os olhos, esboçando um pequeno sorriso devido à paz que sentira naquele momento. Era tudo tão simples e escuro. Tudo tão sereno e harmonioso. Tudo tão calmante e estranhamente acolhedor.

"Tive uma discussão com a minha mãe. Uma discussão bem feia.", respondi por fim, arrastando as palavra quase como uma canção de embalar. "Há muito tempo que andávamos a evitar isto mas, depois de tantas coisas por dizer, hoje foi a gota de água. Ela foi demasiado sincera comigo e eu entrei em pânico. Não soube lidar com aquilo."

"E tu? Foste sincera?"

"Não.", a minha voz saiu trémula e, por instantes, pensei que fosse quebrar. Abracei o meu tronco e respirei fundo, voltando a contemplar o céu escuro que se erguia. A música continuava a tocar e, naquele momento, a única coisa que eu consegui fazer foi chorar. As lágrimas foram caindo rapidamente, enquanto o vocalista soltava notas mais altas e fortes. Foi tão rápido e tão instantâneo que eu nem tive tempo de esconder todos aqueles sentimentos que há muito eu mantinha escondidos. Ashton, continuando a sua condução lenta, esticou o braço e tentou limpar-me a bochecha. A minha mão tocou na dele e eu apertei-a, mantendo-nos estáticos por segundos, enquanto, fora do carro, tudo continuava na normalidade da noite. Fechei os olhos e, com calma, acariciei a pele áspera do rapaz estranho, sentindo-me tão carente como um cachorrinho abandonado.

Social Casualty ಌ m.cWhere stories live. Discover now