49| Raiva, ilusão e vitória

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Eu tinha de aceitar os factos; Richard não gostava de mim. Eu não era uma boa filha e ele preferia manter-se longe dos problemas que eu causava. Foi sempre assim, durante uma vida inteira, e somente a distância e o desprezo faziam acalmar a tempestade dentro do meu peito, levando-me por vezes a descarregar todo o ódio e toda a raiva nas pessoas mais próximas de mim. Michael foi a maior vítima no meio de tudo isto. Graças a Richard e à sua crueldade parental, quando eu conheci Michael e descobri o quão parecido conseguia ele ser com o meu pai, desenvolvi um ódio descomunal, que me custou uma vida de rejeições e amargura. Eu quase perdera o amor da minha vida graças às cicatrizes deixadas nos meus primeiros anos de infância, e agora a história voltava a repetir-se, só que desta vez eu estava preparada para me defender e já não podia culpar os outros pelos erros de um homem insensível e manipulador. Richard fez-me acreditar que as coisas podiam ter sido diferentes, e, durante o mês que passámos juntos, eu conheci uma outra faceta dele, chegando à conclusão do juízo de valor errado que eu criara para o caracterizar; no entanto, e depois daquele telefonema dramático e abrupto, tudo dentro da mim se desmoronou e o passado voltou a assombrar-me, só que felizmente, não o podia fazer para sempre.

Quando me levantei da cama, senti um peso no corpo e quase desfaleci a caminho do andar de baixo, tendo de ser amparada pelos braços fortes de Michael e alegrada pelos seus vocábulos doces de incentivo. Ele continuava a manter a sua opinião acerca do homem que me deu vida, no entanto, eu sabia que lhe custava ver-me tão frágil e destroçada por sua culpa. Já Elsa, a única que realmente me compreendia, abraçou-me com força e lamentou o desprezo de Richard, tentando lidar com a situação de forma pragmática e casual. Porém, eu não queria que ela me tivesse dito aquilo, eu queria que ela me tivesse explicado o porquê de ele se ter ido, e o porquê de eu não ser suficientemente boa para ele. Todos sabemos que eu não sou a melhor pessoa deste universo, mas porquê magoarem-me tanto?

Como era de prever, o meu humor nesse dia estava bem enterrado numa cova funda e coberto de larvas sugadoras de energia. Eu parecia um zombie e tudo o que me saía da boca eram monossílabos e murmúrios arrastados. Eu não queria sentir-me assim, e obrigava-me a sair desta depressão, mas, de cada vez que eu começava a pensar numa coisa positiva, um milhão de outras coisas negativas apareciam para matar qualquer vestígio de boa-disposição ainda presente na minha consciência inanimada. Michael também se esforçou para me trazer ao cimo do poço, mas foi em vão. Eu só queria ir à escola, manter-me quieta no meu lugar, voltar para casa, dormir uma longa sesta, comer algumas porcarias, e esperar que um novo dia viesse e levasse para longe esta melancolia.

"Não há razões para estares assim.", Luke afagou-me o braço, enquanto comia uma barra de cereais. Os seus olhos azuis iluminaram-se quando me viu encará-lo, e isso fê-lo sorrir.

"Está calado.", rosnei, irritada com o barulho que as pessoas à nossa volta faziam. Aquele era o intervalo mais longo que teríamos no espaço de duas horas, e, infelizmente, estava quase a terminar. Eu não queria voltar à sala e ter de ouvir um homem careca explicar a composição da água, nem uma mulher rabugenta dizer-me como raio havia eu de interpretar um monte de palavras escritas há mil anos atrás. Tudo o que eu queria era sair dali, aninhar-me nos braços de Michael e adormecer até o mundo se tornar num sítio melhor.

"Cloe!" Quase como resposta aos meus pensamentos, Mike apareceu naquele mesmo instante, escorregando para o lugar livre ao meu lado. Atrás dele vinha Miranda e Rena, as duas com expressões ternas. Provavelmente já todos sabiam o que tinha acontecido para eu me encontrar tão calada e agressiva, mas eu não me importava; desde que se mantivessem em silêncio, até podiam saber de que cor eram as minhas cuecas.

"Trouxe-te um chocolate.", o meu namorado sussurrou, elevando à frente dos meus olhos o doce. Ele sorriu rasgadamente, tentando criar o mesmo efeito em mim, mas, por mais que eu apreciasse aquele gesto, sorrir era tudo o que mais me custava fazer naquele momento.

Social Casualty ಌ m.cDonde viven las historias. Descúbrelo ahora