46| Águas do Inferno

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Existem sonhos que se tornam pesadelos, e existem pesadelos que se tornam sonhos. A ideia de ter uma relação, especificamente com Michael, começou por ser um pesadelo, no entanto, transformou-se no mais apelativo sonho, e eu juro que o meu único desejo era nunca acordar, mas infelizmente o mundo não para de girar, e a vida continua. Ou pelo menos continuava, se eu não estivesse tão angustiada com o que os meus olhos viram naquela noite. Elsa e Richard não me saíam da cabeça, pelos piores motivos, e, apesar de Michael ser a melhor distração que alguém poderia ter, os meus pais permaneciam bem acesos na minha mente, acrescendo a revolta interior e o sentimento de repulsa que entretanto passara a fazer parte do meu sangue fervilhante. Não podia dizer que estava surpreendida, porque não estava.

"Bom dia..." soltei um suspiro quando a voz doce de Michael sussurrou o cumprimento matinal aos meus ouvidos, rodando na cama para abraçar o meu corpo encolhido. Os lençóis brancos encontravam-se espalhados pela cama, numa incrível confusão, e os nossos corpos, apesar de distantes, pertenciam àquele emaranhado profundamente relaxante. Nós não tínhamos feito nada, apenas dormido, mas eu podia sentir a tensão dos meus músculos sempre que a pele de Michael tocava na minha e ele me apertava contra o seu peito descoberto. "Namorada."

"Bom dia.", tentei forçar um semblante agradável, apesar da frustração que sentia. Virei a cabeça na direção do tufo azul do rapaz ao meu lado e encarei-o, reparando no sorriso rasgado que os seus lábios mostravam e nos seus olhos vermelhos e ensonados. "Bom dia, amor."

"Amor?", ele riu-se, beijando o osso da minha clavícula. "Isto é um sonho?"

"Quem me dera.", tapei-me com o lençol, apesar de sentir o meu corpo peganhento devido ao calor que me assolava. "Isto é tão estranho."

"Estranho?", Michael riu-se e suspirou, acabando por largar a minha cintura. Ele passou a mão pelo cabelo e ergueu o tronco, sentando-se contra o estrado da cama. "Tu sentes-te desconfortável? Eu sei que não estamos habituados a estas coisas... Quer dizer, passámos quase uma vida inteira a agir com...."

"Michael.", calei-o, sentando-me ao seu lado. "Eu não me estava a referir apenas a nós... Eu estava... Eu estava a referir-me a tudo, no geral.", encolhi os ombros, "Aos meus pais, a esta vida, a nós, ao facto de o Leo não dar sinais de vida, ao calor, ao silêncio... é tudo estranho." Os seus olhos claros incidiram em mim com intensidade, e senti-me a aquecer. "Não olhes assim para mim."

"Não, é que...", ele abanou a cabeça, sorrindo, "Eu acho que tens razão." A sua mão escorregou até à minha, agarrando-a. "As coisas estão sempre a mudar e isso é estranho, mas tudo o que é estranho acaba por se tornar familiar se for constante, e nós havemos de nos habituar."

"Uau.", soltei uma pequena gargalhada, fazendo Michael levantar as sobrancelhas com um ar confuso. Ele semicerrou os olhos e largou-me a mão, parecendo ligeiramente ofendido por me ter começado a rir. "Não vamos ser uns lamechas quaisquer, Michael.", abanei a cabeça. O moreno sorriu com emoção e atirou-se abruptamente ao meu corpo, enchendo-o de beijos e caricias, no entanto, mesmo antes de ele ter a oportunidade de fazer mais alguma coisa, uma garganta arranhada acabou com os nossos movimentos.

"MÃE!?", Michael saltou de susto, correndo até à outra ponta da divisão com o lençol branco atrás dele, tapando-lhe o corpo seminu. Os seus olhos encontravam-se arregalados, e uma cor avermelhada começava a tomar-lhe conta do rosto. "QUE RAIO ESTÁS AQUI A FAZER!?"

"Vocês estão atrasados para as aulas.", Karen esclareceu, num tom frio e seco. No seu rosto não havia qualquer vestígio de emoção, apenas uma careta forçada e tensa. Ela lançou-me um olhar ameaçador e eu estremeci, desviando os meus olhos dos seus. "Vistam-se e venham até à cozinha.", ordenou, abandonando a divisão num instante.

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