40| Prova de amor platónico

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Milagrosamente, e possivelmente devido ao Deus misericordioso que se esqueceu de lançar calamidades à minha vida de tão emocionantes façanhas, consegui aguentar uma semana de aulas sem ir parar ao hospital, sem mandar ninguém para o hospital e, acima de tudo, sem destruir um hospital. Tudo parecia correr bem (ou pelo menos dentro dos limites do aceitável) e apenas um terrível cansaço impedia que eu alcançasse o patamar máximo da paz no mundo. É claro que tudo isto tinha uma razão válida, e de certo modo a única justificação possível para esclarecer toda esta harmonia, mas contudo, eu preferia fingir que estava tudo a correr às mil maravilhas e ignorar o facto de ser uma completa antissocial, transformada em ninja invisível. O que acontecia era o seguinte: eu levantava-me de manhã, tomava o pequeno-almoço na companhia da minha adorável família disfuncional, corria para a lata velha de Michael na tentativa de ocupar um lugar minimamente confortável (falhando redondamente em todas as tentativas), resmungava durante o caminho até à escola e, após chegarmos a este maravilhoso espaço de convívio juvenil, eu escondia-me nas saias de Luke, o meu lacaio fiel. Isto impedia que A) as pessoas me vissem porque como já devem ter percebido após milhares de descrições físicas deste loirinho atraente, ele é alto como tudo; B) impedia que Michael tentasse algum tipo de aproximação brusca e íntima e C) mantinha o meu mistério face às pessoas que passavam todos os dias por mim e me olhavam como um alienígena de cabelo roxo-alilazado. Basicamente, ninguém sabia quem eu era, e eu não sabia quem era ninguém (tirando os meus dois seguranças pessoais, claro).

"Queira sentar-se corretamente, menina Grasman." Soltei um suspiro quando ouvi a tão já familiar voz da professora de Inglês (a mesma que me expulsara no primeiro dia de aulas). Depois desse maravilhoso dia negro, ao chegar a casa e ao contar o que realmente tinha acontecido, Elsa tentou não me abandonar numa instituição de caridade, e Richard riu-se como um louco, gozando com a situação ridícula que de piada não tinha nada. No entanto, Michael, ouvindo atentamente a descrição física que eu fizera da mulher enraivecida, constatou que se tratava de Mrs. Dulaine, a adorável e simpática professora do nosso quinto-ano. Imaginem a minha cara e o estado em que não ficou a toalha da mesa, quando eu me engasguei e cuspi toda a comida que tinha na boca.

"Eu estou bem sentada.", resmunguei para mim própria, pousando as minhas pernas outrora cruzadas no chão. Mrs. Dulaine revirou os olhos e continuou a ler um texto ridículo do livro de inglês, tentando imitar a voz de um poeta do renascentismo. Acabava por soar como uma galinha, portanto ia dar tudo ao mesmo.

"Sir Wallace cavalgou pelas estreitas ruas medievais daquela pobre cidade Londrina, enquanto tentava ignorar os mendigos que lhe pediam esmola e as belas donzelas que tanto insistiam...", a bruxa do demónio calou-se assim que o toque de saída soou por cima das nossas cabeças. Dei um salto na cadeira, contente por aquela tortura ter finalmente chegado ao fim, no entanto, senti um arrepio na espinha quando vi a cabra da Abigail levantar-se da sua mesa a uns quinhentos metros de mim e a caminhar na minha direção, com um sorriso cínico nos lábios. "TENHAM UM BOM FIM-DE-SEMANA... suas criaturas perversas e inúteis.", ouvi Mrs. Dulaine praguejar, por cima do barulho abafado que as cadeiras faziam ao arrastar-se pelo chão.

Encolhi-me no meu lugar junto à janela e amaldiçoei-me por ser tão cobarde. Lancei um rápido olhar à vista privilegiada no exterior e procurei a figura alta dos dois rapazes, no entanto, nenhum deles apareceu realmente no meu campo de visão, só um monte de bois com as hormonas aos saltos. Acabei por me virar de novo, lançando os livros de uma só vez para dentro da mochila rasgada. Vesti o meu casaco e aclarei a garganta, tentando ignorar a minha visão periférica e o quanto me enojava ter aquela lambisgoia a tão poucos centímetros de mim.

"Olá, Cloe.", ela cumprimentou, na sua habitual vozinha aguda e carregada de segundas intenções. Revirei discretamente os olhos e suspirei, tentando passar entre ela e uma cadeira mal arrumada que algum dos meus adoráveis colegas deixara fora do lugar. "Pareces perdida. Precisas de ajuda?", a rapariga questionou, enquanto eu me tentava soltar daquele aperto.

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