31| Lamentação fúnebre

734 83 53
                                    

Depois de Ashton se ter ido embora, deixando-me só diante daquela casa em destroços, um grande suspiro trespassou os meus lábios gretados e uma dorzinha contínua assombrou o meu coração duro. Acabei por me sentar nas escadas do alpendre, um pouco assustada com o facto de poder entrar novamente naquela casa que durante tantos anos fora o meu lar disfuncional. Existiam alguns andaimes paralelos às paredes negras e pude reparar nalguns pedaços de plástico a cobrir as janelas. Nunca estive realmente interessada no assunto mas, ao que parecia, a minha mãe já tinha tratado de tudo para que se começassem a fazer obras de reconstrução naquela habitação. Não que a ideia me agradasse muito, no entanto, seria bom poder finalmente sair do sótão apertado de Michael e possuir um espaço só meu.

Ganhando alguma força nas pernas, ergui-me finalmente daquele soalho de madeira desconfortável e peguei nas minhas coisas, dirigindo-me até ao interior da moradia de três andares. Leo, que desde que visitáramos a loja de conveniência se mantivera quieto, era agora a minha maior preocupação. Havia a possibilidade de o pequeno animal marinho se encontrar desidratado, contudo, depois de Ashton lhe ter dado água, percebi que não era esse o problema que tinha entre mãos.

Um profundo suspiro escapou dos meus lábios quando adentrei na sala de estar. O cenário era apocalíptico e o cheiro, esse, podia causar milhares de intoxicações. Contudo, tentando não exalar muitas vezes pelo nariz, continuei naquela divisão, a examinar aquilo que restava da nossa mobília em cinzas. O som de vidro a estalar debaixo dos meus pés era aterrorizador e as paredes, sujas de fumo negro, completamente encardidas, faziam o meu coração bater mais rápido, devido ao incessante clima de terror que elas me transmitiam. Era como estar numa casa assombrada, à exceção de que eu era o único fantasma ali.

Carregando a caixa de Leo nos meus braços, subi as escadas. Não havia uma única fonte de iluminação por ali, somente a lua, que me permitia vislumbrar muito vagamente o caminho e os recantos por onde passava. Era tudo muito sombrio e gelado, tal como eu, naquele dia. Engolindo em seco, empurrei a porta do meu antigo quarto e tentei conter as lágrimas, podendo ver mesmo à frente dos meus olhos as outrora paredes cor-de-rosa que eu tanto odiava. Haviam peluches desfeitos em algodão espalhados pelo chão e, a prateleira onde os meus preciosos livros repousavam, encontrava-se agora reduzida a pó. Afinal sempre era verdade. Afinal não sobrou nada. Nenhuma recordação, nenhum tesouro escondido, nenhum amuleto precioso, nenhuma réstia da minha antiga vida.

Acabei por me sentar na minha antiga cama, ou o que ainda restava dela. Um soluço fez com que as minhas cordas vocais estremecessem e os meus olhos se enevoassem, desfocando ainda mais a negridão que se encontrava diante de mim. Só conseguia recordar os bons momentos que passara ali, os mais recentes, aqueles que eu ainda conseguia lembrar. Uma caixa de gelado, duas colheres, Michael. Lembrava-me disso como se tivesse acontecido há um segundo atrás, como se fosse uma sensação de dejá vú a corromper o meu cérebro decadente. Lembrava-me dele ali, quando ainda éramos duas crianças. Lembrava-me da sua gargalhada quando lhe pedia para não desarrumar os meus livros. Lembrava-me do seu doce sorriso quando lhe pedia para me fazer companhia. Michael esteve sempre ali comigo, mesmo quando eu já não estava mais ali. Era curiosa a forma como os meus pensamentos iam sempre parar a ele, contudo, atribuía a culpa aos anos infindáveis que passáramos juntos. Eu não conhecia outra realidade, somente aquela em que ele estava presente.

Depois de uns minutos ali sentada, limpei a cara e coloquei a minha mochila em cima da cama, tentando encontrar algo quente para cobrir os meus braços desnudos. Corri o fecho e vasculhei no interior daquele saco. Era difícil encontrar algo, sendo que a maioria das peças que trouxera à pressa do armário de Michael eram escuras e se confundiam com o ambiente que me rodeava, no entanto, com um grunhido, puxei a manga de um casaco e vesti-o. Agora o seu cheiro habitava o meu corpo e eu não conseguia sequer conter o sorriso, apertando o tecido de algodão nas minhas mãos frias.

Social Casualty ಌ m.cWhere stories live. Discover now