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(S)a(u)d(a)de(s).

Estou no ônibus das 18:28, você odiava,lembra? Era o horário que aquela tia que sempre apertava suas bochechas estava aqui. Era o início do fim. Do fim do dia, da aula, do nosso encontro. Cheguei no chafariz poucos minutos antes do que seria o nosso encontro. Trouxe minha pequena cafeteria e o sorriso de menino sorrateiro que você tanto amou. Também trouxe o livro do topo da pilha, que você só me deixava tocar depois de demorada inspeção nas mãos. Juro que fiz tudo que você faria. Estou na página 165, a que esta marcada com um papel azul, cor do emoji que ficou no seu celular. Último que me enviou. Último. Por que tudo tem uma última vez? E por que nunca sabemos qual será o último? Eu não pude te dizer que a cor dos teus olhos era a minha favorita. Tampouco, que ela me dava vida. Por que precisa ser último? Eu comecei a ler. Pausadamente e respirando fundo. Meus olhos já estão marejados ao ler e nos meus devaneios misturados com lembranças ouvi sua voz calma e suave como o meu sapato vermelho aveludado que você tanto adorava e vivia me pedindo pra usar. Hesitei ao ler a parte grifada que eu tanto lhe brigava, hoje já não sei se brigaria ou se te abraçaria apertado e diria "Fica mais um pouco". Volta e grifa todos os meus livros, até aquele de capa preta fosca.Eu deixo,mas fica.A música da escola de ballet tão sombria como meu estado tocava ao fundo –entenda as três últimas palavras como quiser. Eu fechei os olhos, imaginei o que você faria e percebi que não conseguiria muito mais. Retornei à leitura depois de muito tempo, com esforço e em silêncio. Silêncio por fora, porque era difícil existir algo mais atordoado que minha alma. Mais inconstante do que meu corpo ao saber que ao voltar pra casa, eu não te encontraria de pijama, um pote de sorvete ou a barra de chocolate que eu nunca esquecia de comprar. Não te encontraria em nenhum outro lugar porque tão peculiar quanto os teus gostos era a tua existência. Fechei o livro e observei todos a minha volta seguirem o seu caminho. É, querida, você me ensinou que o inferno estava em nós. Em mim. E eu aprendi sozinho que o céu era ao teu lado, então, espero que esteja me ouvindo, de onde quer que esteja.

— Eu amo você.

Transbordo, logo escrevo.Where stories live. Discover now