CLXXXIV

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Carta de quem poderia ter ficado.

A culpa foi sua. Essa frase ficou muito pesada? Tudo bem, deixe me por mais uma tonelada. A culpa foi somente sua, Papai. Eu não imaginava chegar a esse ponto, mas já não me restou opção. Sei que você odeia explicações, mas essa não é pra você. Eu poderia ter ficado aqui, ter visto minha irmã concluir cada grade escolar que você também a impôs. Poderia ter ouvido minha mãe contar mais uma história com aquela risada escandalosa que de vez em quando eu imitava e me sentia tão parecida com ela, a ponto de por um segundo, pensar em como era bom estar ali. Eu poderia ter publicado meu livro, aquele que você fez questão de me dizer varias vezes que não era nada, que era só mais uma baboseira de quem não tinha mais o que fazer. Eu sempre soube que escrevia bem e você também. Mas não era motivo de orgulho se não vinha acompanhado a um boa conta bancária, eu aprendi, juro. Eu poderia ter ficado e ouvido meu cantor favorito que você nunca acertaria o nome lançar mais uma música que me faria pensar na vida por horas. Eu poderia ter me trancado mais vezes no quarto e ido a mais algumas festas regadas a bebidas que eu dificilmente tomava em excesso e você não acreditava. Eu poderia ter visto revoluções serem feitas e mais lutas serem ganhas. Poderia ter lido um novo livro favorito na minha estante caindo aos pedaço de tão lotada que estava. Eu poderia ter ido ao show que tanto desejei. Eu poderia ter bebido mais a minha bebida favorita, café, mas se alguém perguntasse, você diria algo do tipo, vodca. Eu poderia ter conhecido mais lugares, principalmente praias, você sabe que eu sempre adorei a sensação da água sobre meu corpo descoberto? Sei que não. Eu poderia ter escrito mais poemas, mais longos e intensos. Eu sempre fui extrema. Mas se alguém pedisse pra você me definir em uma palavra, seria insuportável. Agora, deixe-me te deixar ainda mais perplexo, eu aprendi com você. Eu poderia ter amado mais caras que não ligaria a mínima um ano depois. Poderia ter beijado mais garotas e te enlouquecido um pouco menos do que deve está agora. Eu poderia ter dançado mais músicas, mesmo sem aprender coreografias. Eu sempre fui dura, você dizia. Sempre que ouvia isso, tentava me lembrar de quantas vezes te vi dançar bem. Você me cobrava o que nunca faria. Eu poderia ter cultivado mais amizades, ganhado mais plantas. Eu poderia ter andado em mais ônibus lotados, vistos mais pores do sol. Eu poderia ter dado mais abraços no meu avô. Eu poderia ter falado mais com a minha mãe. Eu poderia ter abraçado mais pessoas. Eu poderia ter mergulhado mais fundo em qualquer que fosse a sensação. Eu poderia ter me despido de mais gente. Eu poderia ter feito muitas coisas, uma delas: viver. Eu sei disso tudo e você também. Mas eu não tô aqui pra te contar dessas coisas, você devia ter visto antes.Eu vim te pedir algumas últimas coisas, mas tenho dito que sei que não vai cumprir. Quando a minha irmã for falar, ouça com atenção e não fique mexendo no celular jogando esse negócio bobo. Quando minha mãe for lhe beijar, não vire o rosto e a chame de doida. Quando minha irmã tiver um problema, resolva com a mesma destreza que faria se fosse seu. Quando a minha mãe quiser sair, leve-a. Ela nunca pede nada. Quando minha irmã tiver um festa, não trate como se ela não fosse responsável. Você nos criou aos dez anos, como se tivéssemos 20. Quando minha mãe te falar uma história, ria mesmo que não faça sentido. Pelo amor de Deus, ria! Quando minha irmã te abraçar, não pergunte quanto ela quer. Afeto não se paga, só se recebe. Quando minha mãe tiver com um vestido, qualquer estampa que seja, elogie. Porra, olha essa mulher e elogia. Quando minha irmã te contar sobre a amiguinha, sorria.Você já teve amigos e histórias, deixe-a também ter. Quando elas falarem qualquer coisa, seja gentil. Eu imploro, seja gentil do jeito que nunca foi comigo. E, quando perguntarem de mim, ao menos uma vez, não minta, diga que foi melhor assim.Agora, finalizando, fique feliz, você já não precisa ser meu pai – e nem eu sua filha.

Transbordo, logo escrevo.Where stories live. Discover now