CLXXVII

184 28 2
                                    

Eu fico pensando, como seria se você entrasse pela minha porta agora. Com o sapato sujo, sem limpar no carpete que escolhemos juntos naquele bazar. Eu não sei se iria brigar, te mandar sair, te mandar limpar, provavelmente não. Estaria ocupada ficando assustada ao te ver com o corte novo de cabelo que eu tanto quis tocar. Estaria sentindo teu perfume que também foi trocado e eu só havia sentido quando você passou por mim aquele dia, fingindo não me ver. Eu me senti menor do que já sou aquele dia. Me senti a mancha insignificante que você ignora da sua camisa favorita. Me senti a areia no asfalto que você só anda calçado. Eu me pergunto se você iria me abraçar, se eu iria erguer meus braços e te envolver de volta em nosso laço. Eu penso se te beijaria com a mesma intensidade ou mais, se teu toque ainda me desfaz. Se a nossa música ainda nos faz dançar ou se virou apenas a melodia triste que nenhum de nós mais ouve. Será que o meu filme favorito ainda é o seu favorito? Provavelmente não. Aquele lugar que íamos toda semana, pra compartilhar bobagem e prometer verdades, você ainda o frequenta? O meu cabelo depois do banho, ainda é teu cheiro preferido?
São muitas perguntas pra nenhuma resposta, porque sei que você não vai aparecer na minha porta. Não vai usar aquela camisa amarela que eu tanto odiava e nem me contar sobre o filme de terror que vai me levar pra assistir, só pra que eu te abrace apertado e te beije o filme todo. Te dando a certeza de que é meu protetor. Não vai me contar como foi a discussão no trânsito ou sua apresentação na faculdade. Não vai me falar os livros que leu e chorou. Das sensações que sentiu naquele voo. Do que encontrou no meio do caminho e amou. Das árvores secas e céus que fotografou. Não vai me explicar aquele conteúdo que eu nunca vou entender. Não vai decorar as poesias que fiz pra você. Nem me ler como se fosse braille, tocando cada centímetro. Nem me ouvir como música clássica, sentindo cada som. Nem me ver como obras de arte, que você nunca entende o tom. Nem sentir meu cheiro, de quem te pede pra vim. Porque você não está na porta e a minha grande ilusão é a tua volta.

Transbordo, logo escrevo.Where stories live. Discover now