40 | incapaz de ser raso

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A sensação de que, num piscar de olhos, a minha vida pudesse acabar foi o que mais me impulsionou a tomar uma das atitudes mais precipitadas que alguma vez tomei: assumir um relacionamento com alguém a quem sequer conhecia há mais três meses

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A sensação de que, num piscar de olhos, a minha vida pudesse acabar foi o que mais me impulsionou a tomar uma das atitudes mais precipitadas que alguma vez tomei: assumir um relacionamento com alguém a quem sequer conhecia há mais três meses.

Estava tudo a acontecer cedo demais, de forma intensa demais, e talvez tudo o que me envolvesse tivesse passado a se resumir a isso: demasia. Eu vivia mergulhado em demasiado perigo, demasiada confusão e incerteza, e isso me inquietava a níveis absurdos, apesar de eu nunca ter tido poder suficiente para decidir as coisas por mim mesmo.

Todavia, naquele momento, sentindo leves e invisíveis traços sendo pincelados no rosto pelos dedos da Ayla – ou minha namorada –, apercebi-me que passara bastante tempo sem estar, de facto, em paz. As preocupações e o medo claramente ainda existiam, mas nada me parecia melhor e mais natural do que me perder na imensidão escura que eram os seus olhos, e nem sentir o aroma do perfume suave sempre que ousasse inspirar parte do oxigênio para os pulmões. Alguma música de quem ela disse ser a SZA tocava num volume baixo, e ela tinha a cabeça encostada no meu braço esquerdo – o qual eu já até começava a sentir dormente –, por cima de um dos travesseiros forrados com fronhas que variavam em tons de rosa a branco. O quarto era iluminado pelo candeeiro disposto ao lado da cama, e pelo lado exterior e quase barulhento do prédio, mas me parecia mais confortável do que o silêncio quase ensurdecedor do meu quarto. E, por esse motivo, eu teria adormecido se a negra ao meu lado não tivesse decidido fazer uma pergunta no exacto momento em que pensei em ceder ao cansaço.

— Por quê tu usavas aquela coisa sobre o olho? — praticamente sussurrou, traçando uma linha imaginária pelo meu nariz, desde o topo até mais baixo, e depois passando pela olheira que resultava de noites mal dormidas e exaustão — Aquela que os piratas usam em desenhos animados e filmes...

A descrição desajeitada e o tom sonolento quase me fizeram rir. Quase, mas não fui capaz de reprimir um sorriso preguiçoso, que arrancou um mais envergonhado dela.

— Não te rias, eu não consigo lembrar-me do nome...

— Oclusor. — murmurei de volta — Eu tinha ambliopia.

— Quê? — franziu o cenho, e a careta acabou fazendo com que eu risse.

— Basicamente, era porque um dos olhos não fixava objectos do mesmo jeito que o outro. Tinha problemas de focalização, e tive de usar o oclusor para forçar o olho considerado mau a fazer o seu trabalho devidamente, além de aplicar colírios. Eu teria perdido a visão permanentemente se o problema não tivesse sido identificado e tratado a tempo, — expliquei, e a observei desviar o olhar e comprimir os lábios suavemente. Tive plena certeza que ela perdia-se em memórias dos tempos em que fazia troça dessa "característica", e acariciei o seu ombro numa tentativa de aliviar seja lá o que fosse que ela poderia estar a sentir. — Mas está tudo bem, agora.

— Eu sinto muito. — soprou, arrastando-se para o meu peito. Quase gemi em satisfação quando o peso no braço foi completamente aliviado. — E os gritos e movimentos quase incessantes?

IDRISWhere stories live. Discover now