Capítulo 19: Segundos Lugares

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Alguns minutos depois ouvi a porta do escritório se fechar em um baque surdo. O marchar rítmico de botas ecoou pelo corredor. Levantei daquele chão empoeirado, sequei as lágrimas que marcavam meu rosto e destranquei a porta daquela sala. Eu não estava com clima para comemorações, então iria subir para o meu quarto e me trancar por lá. Quando cheguei à sala de jantar as pessoas já haviam se servido e estavam conversando contentes.

- Mel, por onde andou? Te procurei pela casa toda. Venha comer, isso está uma delícia. - Brígida indicou algo em seu prato e gesticulou para que eu me sentar em uma cadeira vaga ao seu lado.

Me aproximei dela e observei aquele farto banquete disposto sobre a mesa.

- Desculpe, mas estou sem fome. Acho que eu bebi demais. - menti.

- Então sente-se e me faça companhia...

Antes que eu pudesse negar, Íris apareceu em meu campo de visão puxando Benny pela mão para se juntar aos outros na sala de jantar. Fiquei desconsertada e quis sair dali no mesmo instante. Vê-los juntos era mais doloroso quanto levar uma facada no meio do peito. Analogias a parte...

- Não vai dar. Meu estômago não está acostumado com tanto vinho. Você sabe que eu não bebo tanto... Amanhã nos falamos.

Na pressa para sair daquele mesmo cômodo acabei topando em uma cadeira que se chocou contra a mesa, chamando a atenção de todos os presentes para mim. Balbuciei um ''me desculpe'' antes de sair correndo escada acima. Cheguei no meu quarto e desabei antes mesmo de chegar à cama.

Todas as perdas que tive e o peso da nova vida estavam me sufocando. Não queria sentir mais aquela dor, assim como não a desejava para ninguém. Ela estava acabando comigo.

A claridade de um novo dia me despertou. Acordei no chão do banheiro, mas não me lembro como fui parar lá. Minha cabeça estava doendo à beça graças às taças de vinho da noite passada. Me sentei encostada em uma das paredes de azulejo branco e um cheiro de perfume me acompanhou. Um cheiro masculo conhecido e excitante. Levei a gola da blusa até o nariz e a inalei. Merda. Levantei de supetão e retirei a roupa do corpo em desespero. Abri o chuveiro e não aguardei a água esquentar. Eu precisava me livrar daquele cheiro o quanto antes. Quando chegamos à casa, há mais de doze horas, eu fedia a ''faminto''. Agora eu fedia a Benny. Por mais que a pele já estivesse irritada pelo banho abrasivo do dia anterior, passei o sabonete com voracidade pelo corpo, mas o meu desejo era passar uma lixa bem áspera.

Simples lembranças fizeram com que aquela ardência se tornasse um arrepio bom. Lembrei como as mãos de Benny percorriam determinadas pelo meu corpo e de seu jeito carinhoso de me olhar nos olhos enquanto ele estava...

Chega!

Enxaguei o sabonete restante dos braços e pernas e saí do chuveiro. Enrolei uma toalha no corpo e outra na cabeça e caminhei em direção à cama. Por mais que eu tivesse dormido por horas, meu corpo estava pedindo para ser deitado em algo macio ao invés daquele chão frio e duro do banheiro.

Dormi até uma batida alta e insistente me assustar e me tirar de um sono sem sonhos. A claridade do dia havia ido embora e uma escuridão apavorante preenchia aquele quarto. Por um momento, me senti confusa de onde estava.

- Mel, sou eu, Henri. Abra a porta.

Meu irmão gritou do outro lado. E por conhecê-lo tão bem - coisa de toda a minha vida - eu sabia que ele não se daria por vencido e que se preciso fosse ele permaneceria diante daquela porta o tempo necessário até eu abri-la ou até que ele resolvesse arromba-la. Arrumei a toalha em volta do corpo e entreabri a porta.

- Você perdeu o jantar. Passou o dia inteiro enfurnada nesse quarto?

- Não estava me sentindo muito bem...

Henri me conheci muito bem e sabia que eu escondia alguma coisa. Ele me avaliou por um momento e cruzou os braços na frente do corpo.

- O que aquele cara fez com você não tem perdão. Abusou da sua ingenuidade e eu o odeio por isso. Hoje quase saí no braço com ele, se não fosse a turma do deixa disso eu teria quebrado aquela carinha bonita dele, mas ele não me escapa... Podemos ir embora, se quiser. Só eu e você. Não precisa continuar passando por isso...

Minha testa estava tão franzida que eu senti uma sobrancelha encostando na outra. Henri sempre fora pacífico, quieto. Introvertido, para ser mais precisa. E agora ele estava caçando briga com um cara que daria uma surra fácil nele? Mas ele era assim, daria um boi para não entrar em uma briga e uma boiada para não sair dela.

- Henri, você não tem que se meter em confusões por minha causa...

- É o que os irmãos mais velhos fazem...

- Vocês exageram, sabia?

- Eu sei, mas não quero que nada te aconteça. Agora arrume suas coisas. Partiremos quando amanhecer.

- Não podemos ir embora assim. Custamos muito para chegar a essa casa. Aqui é seguro, poderemos reconstruir nossas vidas. Devagar, é claro, mas aqui é o nosso lar agora. Não sabemos quase nada sobre os mortos que andam. Não sobreviveremos muito tempo lá fora...

Meu irmão fez sua famosa cara de bravo. Ele não gostava de ser contrariado quando já havia tomado uma decisão, mas ouviu tudo o que eu tinha a dizer atentamente e sem me interromper.

- Mel, você não sabe lidar muito bem com segundos lugares. Quando você estava na terceira série e foi vice campeã naquele concurso literário idiota, você chorou escondido todas as noites até pegar no sono durante uma semana. Eu estava acordado todas aquelas noites te escutando chorar em silêncio. E você ainda não conhecia ou se interessava por garotos e essas coisas. Duvido que agora que conhece, isso tenha mudado em você.

Como Henri se lembrava daquele fato? Tive dificuldades em enterrar aquilo na minha memória. Passei por cima daquele acontecimento e fingi que nada tinha acontecido. E estava feliz em ''não lembrar'' daquilo até o momento. Odiei o critério de desempate daquele maldito concurso e ainda não achava que a Stefanie devia ter ganhado no meu lugar.

- Acho que puxei nossa mãe. Tenho o mesmo dedo pobre que ela para escolher homens que enganam e consequentemente nos abandonam. É genético. Você, por outro lado, nunca teve esse problema, não é? E parece que nem vai ter, por enquanto...

Henri não me encarava mais. Ele analisava o chão aos meus pés e pigarreou desconsertado quando acabei de falar. Meu irmão não era um livro aberto, mas também não era difícil lê-lo.

- O que você está me escondendo? Já encontrou alguém?

Escancarei a porta e coloquei as mãos na cintura, aguardando uma resposta.

- Não vim até aqui para falar de mim ou da minha vida amorosa fracassada. Não acho que você irá aguentar ver o Benny com a Íris de novo. E constantemente. Você parecia estar tendo sentimentos por ele que...

- Deixa que com o meu coração eu me entendo. Como eu disse, isso não é novo 'pra' mim. Vai ficar tudo bem, Henri. Não se preocupe.

Dei dois passos a frente e o abracei. Ele parecia encabulado de mais para tocar no assunto ''vida amorosa'' no momento. Se Henri precisava de tempo e coragem para falar sobre aquilo comigo, eu os daria a ele.

- Você que sabe, maninha. Só me avise se mudar de idéia.

Observei Henri sumir de vista ao entrar em um dos quartos do outro lado do corredor. Fechei a porta do meu quarto e me joguei de costas da cama. Meu irmão tinha toda razão, seria difícil ver o homem pela qual eu estava nutrindo sentimentos ao lado de outra. Teria que passar a vê-lo como outro membro qualquer daquele grupo a qual eu fazia parte. Evitaria estar em sua presença e qualquer contato mais pessoal com ele para que a minha promessa não caísse por terra.

Aquele era um território proibido a partir de agora.

Eu não seria o segundo lugar na vida de ninguém, muito menos na vida de Benny.

Diário De Um Apocalipse Zumbi - O Despertar Dos MortosWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu