A Convenção dos Gatos - Parte 1

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Alguns pássaros levantaram voo estalando assas, estavam repousando no alto duma arvore. Os ipês em agosto ganham cores vivas, alguns ficam amarelos, outros completamente roxos, ou brancos, as folhas balançando com o vento. O mês de agosto ao que tange as coisas superiores transcorria normalmente, com seu habitual frio e tempo seco. Agora as coisas mais abaixo, as correlacionadas aos humanos, bem, essas continuavam a confusão de sempre. Lágrimas por um fim de namoro, uma xícara soltando fumaça enquanto alguém lê um livro, as lojas que abrem, as pessoas que andam, carros nas avenidas e vozes perdidas nas ruas. Um sujeito apanhou ao ser assaltado, um político quebrou suas promessas e as pessoas continuam gritando sem nada mudar, apenas ansiando serem ouvidas. Mas mesmo em meio as fuligens podemos encontrar brotos, soprar a poeira e ver aquela mudinha lutando para crescer. Mesmo sem água, sem cuidado e correndo risco de ser pisoteada ela sonha em tornar-se arvore. Um garoto que mesmo sem luz acende uma vela para ler o significado de blackout. Um sorriso pra quem só tinha lágrimas. Uma moça pagando um almoço, um copo d'água que vai na boca seca daqueles que nada tem. Coisas pequenas, quase nada, tipo um bom dia pra quem vinha tendo um péssimo ou uma corrida de bicicleta até o farol. Podemos encontrar isso, e talvez a feiura de sempre é que torna tais coisas singelas tão belas aos olhos desavisados.

E nesse fim de agosto e começo de setembro um dos lugares mais incríveis na terra era Campo Claro. Com suas casinhas emparelhadas, algumas de madeira outras de concreto, seu bairro japonês, suas praias, rios e lagos, shoppings com ipês belíssimos, e o trem, aquela velharia que ainda teimava em ser maravilhosa.

O mês de agosto passou por Aiyra como vento bravo, começou num sopro danado e depois diminuiu, sumindo na forma de uma brisa ligeira que não fazia mais do que espalhar papeis dos coitados de janela aberta. Os acontecimentos do saci, e a festa de Natasha foram os grandes momentos daquele primeiro mês de aulas. A festa repercutiu na primeira semana, assim como os acontecimentos nela. O namoro de Ana com Bruno, as pessoas falavam nisso, e Aiyra não sabia muito o que pensar. Ver os dois grudados era estranho, ainda mais quando as duas primas conversavam e ele chegava de surpresa, rindo e fazendo sorrir, beijando e abraçando, Aiyra afastava-se deslocada olhando pro lado sem saber aonde ir. Sentia estar perdendo sua melhor amiga, sua prima, sua irmã. A mãe de Aiyra disse que as coisas eram assim mesmo, principalmente nos primeiros dias de romance, e que logo elas voltariam a ser amigas como antes, afinal um garoto não poderia fazer tudo o que uma garota precisa.

Outro acontecimento marcante da festa foi o show de humor, todos comentavam como tinha sido maneiro, frases eram replicadas no corredor da escola, na sala de aula, criaram-se piadas internas que os professores queimavam a cachola pra entender e que faziam todos rirem, todos menos Luan que trombudo perguntava para Aiyra do que falavam, e quando ela explicava o garoto ficava mais emburrado ainda.

— Droga, é boa mesmo.

E claro, Luan também era assunto geral. O caso das bebidas repercutiu e pegou muito mal para o já infame rapaz, as pessoas pareciam o evitar ainda mais e algumas brincadeiras envolvendo bêbados eram atiradas de vez em quando, mas ninguém insistia em sacanear Luan já que sua fama de brigão era ainda maior do que a de beberrão. Quem saiu muito triste dessa historia foi Natasha. Ela e Aiyra continuaram grandes amigas e nas conversas era tangível sua tristeza, falar em Luan era pedir para Natasha divagar, como se a desligassem, os olhos perscrutando o vazio, tão pensativa que parecia ver outro mundo, um que não existia classe de aula, nem Aiyra, Cinthia, ou a professora chamando sua atenção. Quando voltava a si todos a encaravam, sem se acanhar respondia as questões de forma perfeita, sorria pedindo desculpas e todos se encantavam com ela.

Natasha tinha o dom de ser carismática sem precisar fazer nada, Aiyra tentava entender o que era encantador naquela menina e realmente ainda não descobrira a resposta. O seu jeito docemente tonto, distraído e sonhador, o jeito empolgado em que discorria sobre qualquer assunto, fazendo suposições malucas como uma criança que desbravava o mundo pela primeira vez, ela era genuína, espontânea e de uma inocência rara. Quando saíam juntas Aiyra sempre se espantava a maneira de Natasha agir, como falava carinhosa com qualquer um que encontrasse.

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