Bel

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Há alguns anos.

Enquanto caminhava, Bel admirava a estrada de asfalto, olhava ao redor, para as arvores enormes, com galhos estendidos abrigando embaixo de suas copas quem quisesse sombra e sossego. Olhar as cores das folhas no asfalto, e observar como eram arrastadas pelo vento, sempre foi um sentimento de maravilha para Bel, das coisas mais belas da vida, o monumento perfeito sobre o homem e a natureza. Bel só estranhava ver isso no dia de sua passagem, não esperava uma estrada de asfalto, arvores enormes com folhas no chão, o vento, o céu claro e limpo, mas sem um sol impiedoso, um dia bom, um dia agradável, mesmo para quem já morrera.

Lá longe Belinda avistou luzes, ouviu uma cantoria, talvez um lamento, vozes que ecoavam perdidas na estrada. Saindo do caminho negro, encontrou tochas espetadas na terra, elas formavam uma estradinha, por onde um sujeito de chapéu na mão cantava algo numa língua esquecida. Outras pessoas surgiram passando por Bel, alguns se lamentavam, mulheres que choravam, homens arrependidos, povo de sangue velho, povo da montanha azul, do amazonas, de Minas Gerais, do sul, do norte, eram muitos, cada um a sua maneira, com suas roupas e costumes, quando de repente todos abriram espaço pra um cavalo passar, um animal alto e branco, com os cascos sulcando a terra, ele diminuiu a velocidade e parou perto de Bel, que pode ver um casal de crianças montada nele, elas encaravam Bel que apenas olhou para todos da estrada sem entender o que acontecia.

— Vai subir ou não? — Perguntou o garoto.

— Eu deveria? — Disse Belinda.

— Ela ainda não entende. — Comentou a menina. — Não sabe sobre o cavalo das almas.

— Você é do sudeste não é? — Perguntou o menino e Belinda assentiu.

– Campo Claro, São Paulo.

— Então sobe.

— Prefiro ir andando.

— Você quem sabe, mas chegamos mais rápido assim.

O cavalo encarou Bel e voltou a trotar passando pelo caminho que os pedestres haviam aberto, sumiu pela estrada de tochas levando junto as vozes das crianças. Bel voltou a caminhar pensando que provavelmente não gostaria de chegar mais rápido a lugar algum, não agora.

A estrada seguia por entre as arvores. Arvores como as que Luan gostava de abraçar o tronco, lá no amazonas tinham visto arvores enormes, as raízes poderosas e as copas inalcançáveis, as irmãs também gostavam de arvores, Heloísa fazia o piquenique sempre debaixo de uma, todas sentavam na toalha, riam e se provocavam, comiam olhando o céu e a grama dançar com o vento. Até Benício gostava de arvores, sempre que iam pescar ele sentava encostado numa arvore, "É o mais acertado, porque se uma sucuri tentar te enlaçar não consegue por causo do tronco", "Aqui não tem sucuris" respondia Bel, "Nunca se sabe pequena Bel, nunca se sabe". Mas enquanto andava Belinda começou a temer arvores e seus galhos, sua raízes feias e retorcidas, os caminhos que elas guiavam, como a cercavam, olhando e sussurrando segredos, Bel quis rir, quis chorar, porque agora? Ela tinha muito pra fazer, precisavam dela, ainda precisavam muito dela... Bel trombou numa pessoa e pediu desculpas, viu que todos estavam parados, e até o cavalo branco se encontrava ali, perto do rio, onde as crianças riam conversando com alguém. Muitas canoas estavam na margem e, aos poucos, todos se aproximaram. As crianças sorriam e abraçaram uma mulher alta e magra, uma mulher esquisita que usava um terno, sapatos bem engraxados e mesmo assim tinha o rosto pintado, coisa simples mas ao costume dos nativos, tinta negra em volta dos olhos, que pegava as sobrancelhas e descia afinando o risco, quase como um choro escuro, e pequenas setas azuis nas faces. A mulher também usava um cocar, de penas azuis e enormes, circundada por outras menores e vermelhas, o cabelo era liso e a maioria num tom negro bem forte, tirando alguns fios que eram coloridos de vermelho e azul, combinando com o cocar. Via-se que ela estava vestida para um ritual, mas não festivo, um formal, mais lúgubre e necessário. As crianças se soltaram da mulher que sorriu bem de leve, os olhos fitando com serenidade e compaixão aqueles dois pequenos que subiam numa canoa, que flutuando, começou a descer o rio. Os pequenos acenaram, se despedindo e com classe e paz a mulher alta acenou de volta.

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