Capítulo 3

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— Não! Você está brincando comigo, Ella? — Eu sequer devia explicações, mas sabia que seria muito pior se não contasse a ela antes de tomar qualquer decisão de mudar de cidade, mesmo que por pouco tempo.

Eu suspirei vendo os olhos levemente puxados dela ficando cada vez mais parecidos com as fotos que eu via do meu avô.

— Não estou pedindo permissão, estou indo e voltarei dentro de um mês.

— Porque? O que você está aprontando, Ella? Já deveria ter idade para não fazer esse tipo de loucura! Seu pai vai ficar furioso.

Se meu pai ligasse para algo além do próprio umbigo e todo o dinheiro que conseguia retirar do meu avô, com certeza eu acreditaria em suas palavras.

— Tenho coisas importantes a tratar e preciso resolver antes do curso acabar, então, ou você aceita e tem ligações minhas recorrentes para saber que eu não morri, ou irei e esquecerei que você existe por todo esse mês.

Os olhos mestiços comprimiram enquanto ela pensava no assunto, não era a primeira vez que ela ou a situação em torno dela tentavam me controlar, mas eu já havia tido experiências demais com ela para saber lidar com suas ordens desnecessárias.

— Você não vai se meter em problema, não é?

Eu sorri, mal tinha tempo fora do ringue. Se eu não estivesse treinando, estava no meio da luta e poucas vezes usava meu tempo livre para fazer algo além de dormir e tentar curar qualquer roxidão antes que eu precisasse visitá-la.

— Como se eu fosse a ovelha negra da família, não é mesmo? — Minha mãe riu, mesmo que tentasse segurar, era impossível.

Seu irmão desaparecido e distante tinha essa fama, coisa que pouco me importava. Mas fazer piadas para tirar minha mãe da linha e conseguir alguns benefícios com a má fama dele, eu fazia questão de usar constantemente.

— Tudo bem, mas quero uma ligação por dia e mesmo que você não se importe, eu me importo e pedirei para a ovelha negra ficar de olho em você. Por precaução, sabemos que você também não é muito confiável, Ella.

— Isso me ofende. — Cruzei os braços, eu não precisava de ninguém de olho em mim, nunca precisei.

— Mesmo que você ou seu avô não saibam, ainda tenho um pouco de contato com seu tio, claro, logo depois que ele percebeu que eu não tinha culpa do nosso pai ser um filho da puta. Então, verei se ele tem um quarto a mais para você...

— Esqueça!

— Se não for assim, Ella, eu irei com você.

— Está de brincadeira? Eu nem moro mais com você, que inferno.

Ela suspirou se aproximando, tocou meu rosto colocando uma mexa atrás da orelha da mesma forma de quando eu era pequena. Isso me desestabilizava, ela sabia disso. Mas eu não discutia, ela sempre foi boa demais para mim, mesmo com o peso do seu sobrenome nas costas.

— Ele não te conhece, Ella e se recusa a participar de momentos em família pois acredita que seu avô destruiu isso. Mas duvido que ele iria recusar a sua estadia de um mês, é a mesma cidade e morar sozinha não é fácil, poupe seu dinheiro, eu falarei com ele.

— Maldita controladora. — Resmunguei e ela sorriu.

— Tente na próxima, querida.

*

Brigamos por mais algumas horas antes de finalmente deixar a casa dela, eu deveria pegar o ônibus e descer na próxima cidade em algumas horas.

Dessa vez, Jay não viria comigo e apareceria apenas uma semana antes da competição realmente começar. Isso me aliviou, ao menos eles não tentariam nada asqueroso durante todo o mês.

Jay não era um cara bonito e se algum dia chegou a ser, o boxe e as lutas de rua fizeram seu bom trabalho. O Nariz torto e o lábio cheio de cicatrizes eram pouco para dizer sobre ele. Mas eu o ignorava e saber que ele ficaria longe por um tempo era fantástico, ele era um ótimo treinador, mas duvidava que fosse um cara legal já que não tinha uma mulher a algum tempo.

Meu crachá da Flour chegou antes que eu conversasse com a minha mãe e ela começasse com o maldito discurso de que mesmo que eu fosse adulta, eu era uma mulher sozinha em uma cidade desconhecida e não podia ficar sozinha.

Ela ficaria surpresa se soubesse da quantidade de pessoas que eu já derrubei apenas por mexer comigo sem o meu consentimento.

Eu odiava ser controlada.

Aceitei a merda dela entrar em contato com seu meio irmão, mas eu já tinha meus compromissos e toda a estrutura para ficar bem e segura perto ao Flour, seria mais fácil do que esperar por um parente que eu sequer conhecia.

O ônibus chegou alguns minutos depois que cheguei na plataforma, como eu tinha apenas uma mochila, consegui embarcar rápido e dormi todo caminho até a cidade vizinha. Não era longe, mas de ônibus e com suas paradas, foram algumas horas para que todos ali finalmente chegassem ao seu destino.

Eu precisava apenas chegar e pegar um taxi até o hotel em frente ao Flour, eu não correria perigo ou risco nenhum como aquela louca controladora tinha imaginado. Além disso, eu tinha o dinheiro da luta que conseguiria me manter muito bem até o dia marcado da minha apresentação.

E depois que eu ganhasse e me classificasse para ser uma das lutadoras profissionais do clube, eu não teria mais que voltar para a cidade pacata e cheia de olhos da minha mãe e do meu avô.

Suspirei aliviada quando a porta do onibus abriu, estava no fim da tarde e os prédios bloqueavam parte da visão, mas ainda assim era possivel ver a camada alaranjada e púrpura tomar o horizonte enquanto a noite chegava devagar.

Eu passaria numa mercearia qualquer e compraria vinho para comemorar e beber até dormir, depois de tudo isso, eu só precisava de um belo descanso.

No entanto, eu não conhecia bem a cidade e tudo o que eu tinha era o meu telefone quanse sem bateria e um mapa para chegar ao hotel, tracei a rota mentalmente de onde eu estava e comecei a andar. Não parecia ser longe e eu sinceramente não me importava de andar, eu era a porra de uma atleta e isso era o minimo que eu tinha que fazer diariamente.

Arrumei a bolsa nos ombros e comecei a minha rota, as ruas não eram tão movimentadas e não parecia ser tão dificil de encontrar os destinos por ali. Suspirei o ar frio e agradeci o silencio, longe de Jay, da minha rua extremamente bagunçada, da louca que ainda achava que tinha que se preocupar comigo.

Seria um mês estranho, mas nada do que eu já não estivesse acostumada, lugar ruim, pessoas diferentes. Eu poderia fazer o check-in e depois de carregar meu maldito telefone, procurar alguma luta de rua em algum dos becos pela cidade. Eu já tinha conversado com Jay sobre isso, e como ele conhecia a área, me deu alguns nomes de ruas para procurar o que eu tanto queria.

Me atentei a algumas ruas e o excesso de barulho de motos, indo e vindo. Parecendo acompanhar as pessoas ao redor e de alguma forma a mim também. Olhei em volta e não havia nada demais, apenas pessoas realmente indo e vindo nos seus afazeres, terminando ou começando seu expediente. Não pude deixar de sorrir ao ver a quantidade de mulheres pelas ruas da cidade, bonitas e relativamente expostas.

Eu tinha o corpo feminino também, os cabelos batiam na altura da cintura e que eu raramente soltava. Seguindo a tradição da familia Sora, eram tão negros quanto as minhas sobrancelhas. Mas eu não havia puxado os olhos orientais e nem o corpo pequeno a ponto de parecer uma criança, por causa das lutas, eu precisava constantemente esconder meus seios dentro de bandagens e por cima o top. O mesmo valia para o meu quadril e se não fosse o meu peso, entraria para a proxima categoria e talvez eu precisaria de muito mais do que peso para conseguir encarar as pesos pesadas.

A sensação permaneceu até que eu precisei atravessar a rua na direção do hotel, o farol fechou e uma quantidade razoável de motoqueiros pararam antes da faixa e por incrível que pudesse parecer, senti o capacete de todos virarem na minha direção, mesmo que eu estivesse vestida como um cara hoje.

Atravessei me sentindo estranha e pude jurar receber um leve aceno de cabeça do último motoqueiro antes de me esconder dentro da rua onde finalmente pude ver o hotel e a fachada do Flour.

Eu suspirei aliviada, odiava me sentir dessa forma. Ao menos, poderia descansar até decidir ir até o clube para não perder a hora do treino amanhã na parte da tarde.

ESTRANHOOù les histoires vivent. Découvrez maintenant