Capitulo 50

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Um bipe soava a cada minuto, era um barulho insistente e perturbador. Mas depois de certo tempo, o som desaparecia momentaneamente.

Ainda assim, mesmo por trás do apitar incessante, era possível ouvir um murmúrio, um lamurio em algum lugar do cômodo. Eu não conseguia me mexer, talvez meu corpo nem quisesse fazer esse tal esforço.

Não me forcei a levantar, não me forcei a abrir os olhos, tudo o que fiz foi me deixar ser parte dos lençóis que estavam esticados embaixo de mim. Eram frios, simples e imutáveis. Parecia que nada poderia me dar mais conforto do que isso.

— Você tem escolhas a fazer, Daniel, não vou falar outra vez.

— Cale a boca, Yakato. Essa família maldita está a ponto de ter a porra de um colapso e eu não tenho medo de você, acredite.

A risada debocha da Yakato me fez tremer, mesmo tentando não me mover, era difícil não ser impactada por aquele som.

— Estou te dando opções, o que, na minha opinião, é definitivamente mais do que você merece. — Mais uma risada ecoou e, em seguida, um som abafado bateu contra o chão. — Você pode me matar se quiser, eu sei disso, mas sou o único que pode ajudar sua sobrinha bastarda.

— Cale. A. Porra. Da. Boca.

— Estou me perguntando desde que essa palhaçada começou, até onde você pensou que esse casinho nojento que vocês dois têm iria chegar? Imaginou mesmo que eu nunca descobriria? Já me basta você ter fugido da nossa cidade e agora manter esse relacionamento repulsivo com essa garota.

— Segure a língua para falar dela, seu problema é comigo e ela sequer deveria estar aqui.

Uma pausa longa demais encheu o quarto, eu não sabia o que estava acontecendo e tudo o que eu realmente queria era sair o mais rápido que eu pudesse dali, com ou sem Daniel.

— Fui obrigado a arrastá-la por sua causa! Já era difícil demais conseguir fazê-lo vir até o Japão sozinho, eu sabia que trazê-la faria com que você viesse como um cachorro atrás dela.

— Me poupe. — Daniel suspirou. — Eu não vou deixar que faça isso, não dessa vez. Cansei de dizer o quanto odeio essa merda de cidade, o quanto odeio a porra dessa família maldita. Isso apenas amplifica meus sentimentos.

— Sentimentos são apenas uma forma de fugir das suas responsabilidades, você sempre fez isso, Hanna nunca te perdoou por causa disso. Agora, seja homem e cumpra com cada responsabilidade que tem com a sua família!

— Você está falando sobre assumir a porra da sua vaga, eu não vou fazer isso.

— Então terei que vender sua namorada, como prometi a Ren, talvez ele seja mesmo uma escolha melhor para cuidar das coisas que fundei.

— Você pode enfiar sua empresa no...

— Chega Daniel!

— Ela não irá ser a sua moeda de troca!

— Vamos perguntar para a sua irmã e seu cunhado, então talvez eles abram mão do que foi prometido a eles apenas para que você foda a filhinha deles com mais facilidade.

Eu estava quebrada, a cada palavra que Yakato dizia, a cada insinuação maldosa que ele fazia questão de expor sobre o nosso relacionamento. Era doloroso, era cruel, mas essa relação nunca foi nada comum e natural.

Nós dois sabíamos dos riscos ao nos envolvermos dessa forma, nós dois sabíamos que não teria futuro, eu só não sabia que seria interrompido de uma forma externa e tão triste como ele estava fazendo.

Mas dar a ele o gosto do meu sofrimento, da dor que estava me causando... não dava para fazer isso e eu não faria. Então, engoli a vontade de chorar e me levantar da cama apenas para quebrar cada um dos ossos que ele tinha no rosto.

O silêncio me daria tempo para pensar, para criar uma forma de conseguir me vingar.

— Você é podre. — Daniel cuspiu as palavras e eu pude sentir na pele o desprezo que ele sentia pelo próprio pai.

— Está me confundindo com seu caso, Daniel. — Yakato limpou a garganta. — Médicos para o seu caso de estimação, ou a liberdade para vocês dois.

Dessa vez, foi o som de uma porta batendo que ecoou e fez meus pelos arrepiarem, agora eu definitivamente estava sozinha.

— Merda Ella... — O tom de voz fraco de Daniel me fez sentir uma dor no peito que nunca me permiti sentir antes. — Como posso fazer isso sem você?

Fiquei confusa na hora, não consegui entender o que ele estava falando e como eu não poderia ajudá-lo.

Então me forcei a levantar, mas nada parecia se mover, era como se toda a minha força tivesse sido drenada. Essa falta de controle me fez entrar em pânico e me forçou a abrir os olhos, mesmo que me fizesse sentir cada vez mais dor em toda a minha cabeça.

O teto claro me fez lacrimejar, demorou tempo demais até que a minha visão se acostumasse com a claridade e com a silhueta daquele homem que destruiu minha vida e que, mesmo assim, eu amava.

Daniel estava com os dedos machucados, com o rosto cortado e mais algumas lesões sobre os braços, pelo menos foi o que consegui ver até a manga da camisa preta.

Furioso como sempre, parecendo estar prestes a acabar com todos e qualquer pessoa que aparecesse na sua frente.

Respirei fundo algumas vezes, meu desespero ia e voltava a cada segundo que passava. Era claro que algo estava errado, algo estava faltando e eu não sabia como fazer para que ele olhasse para mim, para que ao menos me dissesse o que estava acontecendo.

Minha pele estava dormente, meu corpo não tinha força alguma e nesse momento eu sabia nada e nem ninguém poderia me ajudar.

Daniel passava os olhos por mim, demorando nas minhas pernas e isso me assustava mais do que eu poderia explicar. O verde brilhante se apagava e voltava a brilhar, como se a esperança se perdesse em algum lugar no fundo da sua mente e retornasse com mais alguma ideia louca que provavelmente nos colocaria em perigo outra vez, como ele sempre fazia.

— Inferno! — Daniel bradou e bateu a mão machucada contra a mesa de cabeceira que estava ao lado da minha cama.

Isso me fez perceber finalmente que todos os sentimentos dele eram reais, que cada maldita palavra que amaciava a minha mente vinda dos lábios dele, eram todas tão sinceras quanto ele podia demonstrar.

Era assim que ele demonstrava seus sentimentos, era assim que ele expunha tudo que guardava em seu coração frio e fechado.

Mas então, ele se deixou cair sobre alguma cadeira que estava próxima o suficiente para que ele segurasse entre meus dedos e trouxesse para mim, pela primeira vez que abri os olhos, a sensação do calor das suas mãos machucadas.

— Eu não posso fazer isso com você, Ella... mas eu também não posso te deixar assim.

Eu me esforcei, me esgotei tentando fazer com que os meus dedos — que deveriam obedecer os comandos do meu cérebro — apertassem os dele com a mesma intensidade.

Mas era demais para mim e parecia que isso não seria suficiente, que eu não era suficiente no momento para também dar qualquer tipo de conforto a ele.

Eu nunca o tinha visto chorar...

— Eu não posso escolher entre salvar sua vida e te perder novamente, não posso te entregar para ele... mas também não posso deixar que morra. — Daniel suspiroufazendo estremecer meus ossos. — Eu não posso...

não fechei os olhos em nenhum moment nem mesmo para tentar limpar a visão embaçada que teimava em ficar, mas ali, enquanto ele dizia coisas que estavam me assustando com tanta força, eu não consegui resistir. Fechei os olhos com tanto afinco que as lágrimas finalmente moraram parte do meu rosto e cabelos.

Ao menos isso eu podia sentir, a força das minhas lágrimas quentes escorrendo para longe dos meus olhos.

— Merda Ella... Você tem ideia do quanto me deixou assustado? — Talvez eu realmente não pudesse ter tempo nenhum para sentir nem mesmo a dor. — Caralho mulher, você consegue me ouvir?

Acenar era realmente impossível para mim, mas mesmo cansada demais para conseguir abrir os olhos uma segunda vez, eu os movi, apenas para ver o rosto corado e ensanguentado de Daniel quase em cima do meu antes de perder tudo outra vez.

ESTRANHOWhere stories live. Discover now