A Lenda

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*

Marie sorria, embalada pelo aroma do ensopado no fogo e o bom humor de Lenore. Naquele momento, o cozinheiro a divertia contando histórias constrangedoras de sua infância.

Ela ajudava Tyene a descascar batatas. Uma tarefa que, havia muito tempo, não desempenhava. Mas ainda estava brava com Virnan e qualquer oportunidade de afastá-la de seus pensamentos era bem-vinda.

— O que a está chateando, Mestra? — Lenore indagou suavemente, enquanto Tyene franzia a testa, que mal era vista debaixo dos cabelos volumosos e rebeldes.

A ordenada largou a faca e a batata que descascava, encarando o rosto magro e bondoso do homem, que lhe sorria gentilmente. Percebeu que a pergunta foi proferida por pura preocupação e não por uma indiscreta necessidade de satisfazer a curiosidade que o tomava.

Tomou um alento.

"Tenho um pouco de dor de cabeça." — Respondeu.

Não era mentira. De tanto pensar em Virnan, sentia-se esgotada. E pensar que, naquela manhã, mal podia conter a ansiedade de reencontrá-la. Agora, tudo o que desejava era passar o resto do dia sem esbarrar com ela pelos corredores do castelo.

— Farei um chá. — Lenore se prontificou e ela forçou um sorriso de gratidão.

A chuva começou a cair meia hora antes. O som dos trovões estremeciam as paredes e os raios iluminavam o ambiente a cada instante.

— Essa tempestade está começando a me assustar — Tyene comentou, notando a chegada silenciosa de Virnan, que recostou-se na madeira da porta, displicentemente.

Sua chegada espalhou o perfume de florais pelo lugar, misturando-se ao cheiro dos condimentos e do ensopado. A certeza do banho recente foi acentuada pelos cabelos úmidos e a vestimenta limpa.

Quando não estavam em uma missão no continente, os membros da Ordem usavam túnicas de algodão brancas, excetuando os novos ordenados, que deviam usar vestimentas cinzas durante todos os anos de treinamento. A faixa colorida na cintura revelava sua posição na hierarquia e a que classe pertencia, de acordo com o tipo de bordado dourado que as enfeitava. Circular para a terceira classe, triangular para a segunda e quadrada para a primeira.

Virnan era uma guardiã de segunda classe.

Marie passou a dedicar uma severa atenção às batatas, após perceber a presença dela que, para aumento do seu desconforto, se aproximou da mesa e largou-se em um dos bancos. Com um jeitinho metido, tomou um par de cenouras próximo a pilha de batatas, no centro, e catou uma das facas largadas sobre a mesa.

— Me alegro em revê-la, Guardiã Virnan! — A ajudante de cozinha falou, com um sorriso largo. Era fato conhecido que admirava a mulher e se inspirava nela o, que para alguns, era sinônimo de falta de sensatez.

A guardiã lhe sorriu de volta, mordendo uma das cenouras que descascou.

— Também é bom revê-los. — Voltou-se para o rosto corado e sério de Marie.

Ela sequer lhe cumprimentou, e pelo modo como sua faca decepava a casca das batatas, estava claro que ainda se encontrava chateada. Virnan achava aquela fúria cômica, embora se esforçasse para não deixar isso claro para ela e, assim, aumentar sua raiva.

— Nunca vi uma tempestade assim — Tyene comentou, e quase saltou do banco quando a porta que levava para o exterior abriu-se de supetão.

Um raio iluminou o rosto bochechudo do homem sob o umbral. Ele entrou, fechando a porta com dificuldade, graças ao vento forte. Retirou a capa encharcada e pendurou próximo à entrada. Era roliço como um barril de vinho, e as botas molhadas fizeram um som engraçado quando buscou lugar junto ao fogo.

A Ordem: O Círculo das ArmasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora