A cor do círculo protetor

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*

Fantin passou a mão na testa, aliviada por conseguir respirar normalmente. Agradeceu o mago-curandeiro, fazendo um esforço para lhe dirigir um sorriso gentil, enquanto ele se retirava do aposento após fazer uma mesura.
A mestra fitou a porta pela qual ele passou, ainda sentindo a euforia e o medo da contenda nos céus. Baixou o olhar para as mãos, apenas para constatar que o tremor nelas havia diminuído, mas persistia. A cadeira rangeu quando se pôs de pé, dedicando um momento para fitar Virnan deitada na cama, então caminhou até o espelho e avaliou o trabalho do curandeiro com uma careta de desagrado.
Embora a magia dele fosse forte, sua cura era desleixada. Sob seu julgamento rigoroso, em ferimentos como os que sofreu, o aprendiz menos dotado da Ordem era capaz de executar uma cura mais eficiente e rápida, sem deixar quase nenhuma cicatriz. Contudo, a convivência com o povo florinae, apesar de pouca, lhe ensinou o quanto eles valorizavam as cicatrizes e tatuagens de um corpo.
Essas marcas contavam histórias sobre as pessoas que as possuíam; falavam da coragem, das glórias e poderes, e se eram merecedoras de respeito e admiração. Neste ponto, eles abandonavam as barreiras impostas pelo sistema de castas; razão pela qual a mãe de Virnan, Denna, foi uma das aurivas mais reconhecida de seu tempo.
Com um estalar de lábios, Fantin passou os olhos sobre as novas marcas em seus ombros, reparando que a antiga cicatriz, que em outros tempos a definiu como uma prostituta de guerra, havia sido sobreposta por outra e já não era mais reconhecível. Ao menos isso a agradou, então deu um sorriso leve para seu reflexo.
— Que tal parar de fingir que ainda está inconsciente? — Falou, por fim.
Se voltou para a cama a tempo de assistir Virnan contrair o lábios.
— Não estou fingindo, apenas pensando. — A guardiã respondeu, mantendo os olhos cerrados.
— Então, pense de olhos abertos. Quieta, assim, me faz pensar que está morta. — Era verdade. E Fantin estremeceu com a ideia, passando a mão no pescoço, enquanto retornava para junto da cama.
Virnan obedeceu, fazendo uma careta para ela.
— Você está horrível. — Disse.
A mestra abriu os braços, indignada.
— E de quem é a culpa?! Nós quase morremos! — Enfiou uma mão suja de sangue seco nos cabelos desgrenhados. — Me faça um favor; na próxima vez que quiser se aventurar nos céus, sinta-se à vontade para me deixar aqui no chão.
Virnan sentou na cama, tateando a testa. Procurava um galo ou corte no local; obviamente, nada encontrou. Contudo, a dor da pancada que recebeu permanecia, fazendo-a se sentir tonta e enjoada.
— O que foi que aconteceu com aquela história de não me deixar sair sozinha em meio à uma guerra? — Provocou.
— Esqueci no momento em que você desmaiou e deixou a responsabilidade de salvar nossas peles comigo! — Fantin rosnou, cruzando os braços. — Deuses, nunca senti tanto medo na vida!
Ela fez uma careta e sentiu um calafrio percorrer suas costas até atingir a nuca e se dissipar. Balançou a cabeça, afastando a lembrança dos momentos de desespero que viveu. Virnan estreitou os olhos percorrendo a figura amiga com interesse, antes de apontar para um baú aos pés da cama.
— Vista algo antes de continuar brigando comigo; não consigo me concentrar com você quase nua à minha frente!
Era um exagero, todavia Fantin corou violentamente, enquanto se dava conta de que andava pelo cômodo usando apenas as calças rasgadas em vários lugares e a faixa que lhe recobria os seios e pouco escondia deles. Estava tão assustada e com tanta dor durante a cura, que sequer percebeu quando o mago-curandeiro lhe retirou a couraça e a blusa em farrapos.
— Você não presta! — Disse ela para Virnan, que teve ganas de gargalhar, mas se controlou para não inflamar ainda mais a raiva da amiga.
— Há de convir que você é uma bela distração. — Sorriu de lado, provocando-a um pouco mais.
— Dá pra parar?! — Se adiantou para o baú e pegou a primeira blusa que encontrou, ciente de que aquela peça pertencia a Marie e, portanto, lhe cairia bem. — Não é o momento para suas brincadeiras, afinal!
Jogou a blusa sobre a cama e desapareceu atrás de uma porta no canto do cômodo. Por alguns instantes, Virnan ouviu apenas os passos suaves dela e o som da água com a qual estava se lavando. Fantin retornou logo, enxugando a face e os braços, já livres do sangue, então enfiou-se na blusa devagar, sentindo os músculos doloridos.
— É difícil resistir. — Virnan se defendeu, retornando ao assunto. — Um dos maiores prazeres dos meus milênios de vida é poder provocar você e me divertir com as suas reações.
Fantin inspirou fundo, mordendo o lábio inferior. Sabia que Virnan percebia e compreendia seu medo, assim como fez na noite do ritual no Salão Lunar, e que apesar de se divertir mesmo com suas reações, naquele momento o que estava fazendo era distraí-la daqueles sentimentos ruins. Mesmo assim, comentou em voz baixa, enquanto atava os cordões da blusa junto a gola:
— Devia ter deixado você se espatifar no chão.
Um sorriso marcou os lábios da amiga e Fantin ficou feliz por vê-lo.
— Então, que diabos eram aquelas coisas, afinal? — Retornou ao assunto, recordando os estranhos pássaros negros que atacaram-nas.
— Eram Brissus. São espíritos dos ventos calmos, brisas. Raramente se deixam ver e, quando o fazem, costumam assumir formas de animais voadores. Possuem natureza branda e não são tão poderosos quanto os Ventius, como Ishtar. — Virnan gemeu a resposta e escorregou para fora da cama, dando alguns passos incertos.
— Eles não me pareceram nada tranquilos...
— Isso é porque eles foram corrompidos. — Estacou no meio do quarto, inspirando fundo para encontrar o equilíbrio. — Quando assumem formas visíveis, os Brissus costumam ter cores alegres. São espíritos muito belos. É uma pena que Érion tenha conseguido apanhá-los.
— Eu era tão feliz quando vivia na ignorância... — Fantin estalou os lábios, desanimada. — Este mundo sempre foi cheio de coisas ruins, mas agora acho que ele é uma verdadeira porcaria!
O colchão fez um barulho abafado quando se jogou sobre a cama com os braços abertos. Se pudesse, a mestra se enroscaria naqueles lençóis e dormiria por dias, assim como o corpo clamava. Só sairia de lá quando tudo estivesse terminado. Mas a amiga estava certa, havia pessoas amadas esperando e torcendo por ela; havia tantos desejos a realizar ao lado de Tamar e muitas outras coisas que ansiava proteger.
— Não basta aquelas malditas sugadoras, ainda teremos que nos preocupar com pássaros assustadores! Quando isso acabar, faço questão de jamais colocar os pés fora da Ilha Vitta de novo. — Reclamou.
Ela fez um esforço para se sentar direito e Virnan se dirigiu para a mesa no canto do aposento, onde uma jarra de água repousava no centro. Despejou o líquido em um copo e saciou a sede.
— Creio que já não hajam sugadoras sob o comando dele. — Declarou, tornando a encher o copo. — Nem todos os espíritos atormentados se tornam sugadoras e aquelas que conhecemos eram as eleitas. Os espíritos que vimos hoje, suponho, são o próximo estágio dos planos de Érion. Zarif disse que ele fez algumas experiências. Meu palpite é que os Brissus são os primeiros passos dele depois de colocar aquela maldita Sombra em Zarif. Como disse antes, Brissus raramente se deixam ver e, também, não costumam ser atraídos pela magia. Se eu estiver correta, os que encontramos são muito jovens; espíritos recém-nascidos. Se fossem antigos, teríamos sido despedaçadas lá em cima.
— Isso me faz sentir "muito" melhor! — Fantin derramou sarcasmo nas palavras. — Nós quase viramos cinzas! Isso, sim! Ele deve ter um exército dessas coisas.
— Creio que não. — Bebeu mais um pouco d'água. — Mas é só um palpite.
— Um palpite não é certeza. Contudo, eles não são tão difíceis de matar. O nosso real problema é aquele dragão. Então, me diga, como vamos dar conta dele?
Assim que terminou de falar, Fantin abanou a mão diante da face. A Sombra de Zarif era um inimigo preocupante e assustador, mas não merecia a atenção imediata. Ela disse:
— Deixe isso para depois. No momento, quero mesmo é saber como vamos lidar com a queda das barreiras. Imagino, que enquanto estivemos lá em cima, você também percebeu que temos um probleminha com "ratos".
— Sim... Temos "roedores" bem grandes minando as barreiras de dentro da cidade. Por isso, elas estão caindo tão rápido.
Ela atravessou a porta que levava à sacada e Fantin a seguiu de perto, pensativa. Quando Virnan a levou até a casa de Laio no meio da noite, alegando que ainda havia seguidores de Érion escondidos na cidade, a mestra pensou que o cuidado da amiga se tratava de um excesso de zelo. Mas agora que o momento do confronto tinha chegado, admitia que preferiu fingir-se de inocente para não ter que encarar a realidade de que estavam caminhando para um destino sem volta.
Sentou as mãos na balaustrada, sentindo toda a construção tremer, ante um novo ataque às barreiras. Assustados, pássaros alçaram vôo, abandonando as árvores dos jardins do palácio.
— Que faremos? — Indagou.
Algo no semblante da amiga a alertou de que não iria gostar da resposta.
— Nós?! Nada. Já temos muito com o que lidar.

**

Bórian mancou atrás de Melina. A dor era intensa, mas ele conseguia acompanhar o ritmo da grã-mestra e dos guardiões.
— Já deveríamos ter encontrado eles. — Disse um guardião.
— Andamos bem mais que quinhentos metros na direção que você indicou. — Melina falou para Bórian, interrompendo o avanço do grupo.
O espírito sentiu-se grato pela pausa e agachou-se. Sentou as mãos no chão, integrando-se ao solo. Ele comprimiu os lábios, nervoso.
— Isso não faz sentido...
— Do que fala? — Melina foi ríspida.
Ele ergueu a cabeça para fitá-la, então resolveu tentar outra vez. Novamente, seu rosto se tornou sombrio. Se pôs de pé, apoiando-se em um dos guardiões.
— Acho que estamos com problemas. A minha integração não revelou quase nada diferente de antes. É como se ainda estivéssemos no ponto inicial do ataque. Vi a elevação a quatrocentos metros, vi o grupo de Voltruf a pouco mais de um quilômetro. A única diferença é o fato de que, agora, o grupo inimigo se aproxima deles.
— Você tem certeza disso?
Ele meneou a cabeça, confuso.
— Usar magia aqui nunca foi aconselhado pela Ordem Castir. A magia deste lugar é tão abundante e está tão impregnada pelo sangue e emoções negativas das batalhas travadas aqui, antes da separação dos mundos... Acho que isso pode estar me confundindo. — Admitiu. — É possível que isso ocorra porque agora sou um espírito e minha magia atual mal pode ser comparada a que tive em vida...
— Ou podemos ter caído em uma armadilha muito maior do que imaginamos. — Um dos guardiões o cortou.

***

Voltruf manejou o chicote líquido para interceptar mais uma saraivada de flechas e voltou a se encolher atrás da rocha na qual se abrigava com Marie e Emya. A intensidade dos ataques diminuiu, mas ainda eram constantes e portanto não lhes permitia abandonar a clareira.
— É o lugar perfeito para uma emboscada, mas o que Fenris disse faz sentido. Por que não estão usando magia? — Emya afirmou, acompanhando o olhar de Marie.
As duas observavam a tentativa dos soldados de manterem a formação de defesa. Embora a ajuda de Voltruf estivesse sendo valorosa, algumas flechas escapavam à sua interceptação e alcançavam os homens.
Estamos longe demais. — Voltruf concluiu. — Bons arqueiros podem atirar setas a longas distâncias, mas o uso da magia tem um limite. Um mago comum pode fazer conjurações que se estendam por duas ou três dezenas de metros, enquanto que um castir pode ir muito além disso. Além da magia nata, que chega a ser dobrada com o uso de uma tucsiana, ainda podem controlar espíritos naturais.
— Se é o caso, eles nos querem exatamente aqui. — Emya deduziu. — É provável que estejam nos cercando agora.
— Atirem! — Um dos comandantes gritou para os arqueiros midianos.
Os homens aproveitaram as chamas das flechas inimigas e atearam fogo as suas próprias setas, antes de revidarem. Marie assistiu as hastes cruzarem o ar, com uma desagradável sensação de reconhecimento. Ela fez um gesto para um dos soldados que flanqueava a pedra atrás da qual se abrigavam; ele demorou um pouco para entender que a ela desejava ver seu escudo. Ríspida, a mestra o tomou sem cerimônia; arrancou uma das flechas presas a ele e devolveu o escudo.
— Qual o problema? — Emya inquiriu.
A irmã analisou a haste com cuidado, por fim, gesticulou algo, irritada com o fato de não poder falar e Voltruf fez um círculo de contenção no braço dela, que inspirou fundo, antes de responder.
— Estamos lutando contra amigos!
— Do que você está falando?! Estamos nos limites da Floresta de Pedra, a poucos passos da cidadela. Foram eles que começaram o ataque! — Emya argumentou.
Os lábios rosados de Marie se comprimiram. Ela ergueu a flecha, apontando para as penas em uma das extremidades.
— Verde, a cor do círculo protetor. — Girou a flecha para mostrar a extremidade afiada, tocando um conjunto de marcas no metal da ponta. Eram tão pequenas que poderiam passar despercebidas.
— Droga... — Emya gemeu, reconhecendo o símbolo da Ordem.

A Ordem: O Círculo das ArmasWhere stories live. Discover now