Florinae

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*

Melina acompanhou o baile das chamas na fogueira, absorta à curiosidade que inspirava. Revolvia as lembranças do dia em que deveria ter morrido no altar do Cavaleiro. Regressou à esteira em silêncio. Sentou devagar, deixando-se envolver pelo cheiro da madeira a queimar. Uniu as mãos sobre o colo.

— Nunca contei sobre isso a ninguém. Sempre que me perguntavam sobre a pessoa que me salvou, dizia que não recordava de nada. Mas eu ouvi sua voz e vi o seu rosto. — Mirou Virnan.

Captou dela apenas um dar de ombros. A guardiã parecia ausente de si mesma, envolta em um aspecto abatido e doentio. Nem mesmo o sorriso, que já tinha lhe abandonado os lábios, parecia ser o mesmo. Não era nenhuma surpresa, já que sua saúde ainda inspirava cuidados.

— Sim, pensando bem, ela se parecia com você. — Melina concluiu.

Fez um gesto no vazio, brincando com os fios grisalhos que se soltaram de seu coque.

— Ela era tão jovem quanto você. Astuta, corajosa, impetuosa, mas também era bondosa. Fiquei ao seu lado por alguns dias. Para ser sincera, não sei quem cuidou de quem naquela época. Ela se feriu gravemente e eu também não escapei incólume.

As roupas não permitiam que enxergassem as marcas em sua pele. Marcas deixadas pelas garras afiadas do dragão. Mas essas não eram tão profundas quanto aquelas que ficaram em sua mente e que, apesar de terem se passado cinquenta anos, ainda a faziam acordar gritando no meio da noite.

— Como você sabia? — A voz lhe escapou, ligeiramente falha.

Virnan escorregou pelo tronco da árvore até o chão. Afagou a vegetação sobre a qual sentava, rendendo-se a um prazer que, há muito, não sentia. Cerrou os olhos por alguns instantes. Desejava deitar-se ali e desfrutar aquela sensação até que a morte viesse lhe buscar. Mas ainda tinha muito que fazer antes disso. Respondeu devagar:

— Sei, porque ela me contou no dia em que morreu.

Enfiou uma das mãos na terra, recordando o dia em que Maxine Dastur cruzou seu caminho. Aspirou o ar, mas o cheiro que lhe chegou não era o da floresta nem o da fumaça que se elevava da fogueira. Tampouco, era do sangue, tanto o seu próprio quanto o dos homens que matou na estrada, e que ainda se encontrava em seu corpo mesmo que em pequenas quantidades. O cheiro que lhe invadiu as narinas vinha da memória de paredes rochosas, estreitas e sufocantes de uma câmara.

Na escuridão daquele ambiente, em meio à confusão mental em que tinha sido jogada, deu-se conta da mulher que a encarava com um sorriso um pouco débil. Em contrapartida, os olhos continham uma certeza absoluta, expressando o desejo de ir adiante com o que tinha planejado, não importando as consequências.

Algo naquela mulher a recordou de si mesma, mas estava tão despedaçada que não conseguia se concentrar em sua figura ou no que dizia até que avistou Lyla ao lado dela e, juntas, elas a tiraram das trevas.

A voz de Alina a arrancou da lembrança, Virnan voltou a abrir os olhos e a sensação de sufocamento lhe abandonou. Piscou algumas vezes para se situar.

— Não faz sentido. — A bibliotecária depositou a caneca de chá sobre um tronco, enquanto o castanho inquisidor dos olhos de Marie se devotava a Virnan. — Aquele homem a confundiu com essa tal Maxine. Não faz sentido ela ser uma idosa. Pelo menos, não da forma que ele falou. Mas se for, acaso ela é sua mãe ou uma parente?

Os ombros da guardiã balançaram à medida que ria alto, afastando de vez a imagem dos olhos amarelados de Maxine.

— Ah, não, Mestra! Ela não é minha mãe. Maxine nunca conheceu os anseios de um coração materno. Mas, sim, temos um parentesco, ainda que distante.

A Ordem: O Círculo das ArmasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora