Auriva

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A sede era intensa e foi ela que despertou Virnan, afastando as lembranças em forma de sonho, que a inconsciência lhe trouxe. A guardiã demorou-se fitando o céu claro que, vez ou outra, a folhagem espessa das árvores deixava ver.

Ela sacolejava no piso de uma carroça, ladeada por três guardas. Fez um esforço para sorrir e os lábios cortados e inchados lhe enviaram pequenas ondas de dor. Não que isso fizesse alguma diferença em seu estado, afinal todo seu corpo reclamava pelos maus tratos sofridos nas masmorras de Bantos.

Voltou a cerrar os olhos, tentando captar os sons da floresta pela qual passavam. Mas tudo que lhe chegava era o som dos passos firmes dos soldados, o trote dos cavalos, o resvalar das armas no couro das bainhas, as conversas sussurradas dos homens fadigados após tantos dias de caminhada. Houve um tempo em que esses sons faziam parte do seu dia-a-dia, assim como as manchas de sangue nas vestes e espadas.

Voltou a abrir os olhos. A sede que a tomava era quase um tormento, principalmente, porque só sentia o sabor férreo de sangue. Fez um esforço para sentar-se, fingindo não ver que os guardas redobraram a atenção, ainda que não esperassem um ataque de sua parte. Tinha as mãos em grilhões, cuja as correntes estavam presas a uma argola fixada na madeira da carroça. Eram compridas o suficiente para lhe permitir alguma liberdade de movimentos como, por exemplo, abrir os braços. Os grilhões eram cravejados com pequenas pedras âmbar, cuja finalidade era inibir o uso da magia.

Virnan fitou as mãos. Sangue seco e sujeira recobriam a pele, escondendo algumas das cicatrizes que possuía. A constatação a fez recordar do sonho que acabara de ter. Sonho que, na verdade, era uma lembrança de um passado distante.


— Você me assustou! Juro por todos os deuses que iria até as Terras Imortais, apenas para matá-la outra vez se você perecesse naquela arena!

Virnan caiu na risada, embora as dores que sentia fossem mais fortes do que deixava transparecer. Não gostava de se mostrar fraca diante de Lyla.

— Eu venci, não foi? — Argumentou.

— Mas a que preço? Mal consegue ficar de pé. E suas mãos... — Lyla baixou a vista para as faixas ensanguentadas que as cobriam. — Suas mãos estarão marcadas para sempre.

— Já estava na hora, não? Uma protetora sem cicatrizes pode ser facilmente confundida com alguém inábil para a função. Portanto, inútil.


Virnan ergueu o olhar, trazendo as mãos para junto do corpo, então fitou a mulher sentada ao seu lado. Lyla devolveu o olhar, preocupada, exatamente como naquela lembrança. A guardiã balançou a cabeça, esperando afastar aquela alucinação. Em vez disso, a visão dela se tornou mais nítida, reavivando a memória.


Lyla jogou-se sobre a cadeira ao lado da cama, afastando as expressões de pena e cuidado. Fez um muxoxo, fechando a mão sobre o tecido fino e delicado do vestido que usava. Era a mulher mais bela que Virnan teve o prazer de admirar e jamais se cansava de fazê-lo. A amava, contudo, o amor que lhe dedicava não era romântico.

— Sabe o quanto detesto quando fala de si mesma como se fosse um objeto substituível. — Lyla ralhou com ela.

— Sou uma auriva, todos nos veem assim. — Virnan a recordou, simplista. — Já tivemos essa conversa antes, mas você insiste em esquecê-la.

Virnan a fitava encantada com a preocupação que tentava esconder por trás da raiva. Lhe fascinava os olhos violetas e levemente repuxados, característicos da casta nobre a qual pertencia.

A Ordem: O Círculo das ArmasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora