Lunar

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Virnan olhou-se no espelho, enchendo as bochechas de ar e deixando os braços caírem na lateral do corpo com ruído. Voltou-se para Lyla, que estava sentada na beirada na cama com um sorrisinho orgulhoso. De pé, ao lado dela, estava o criado que lhe trouxe uma refeição e acabou por ajudá-la a terminar de se preparar. O rapaz olhava para o chão, apertando as mãos nervosamente.

No passado, não era uma reação incomum à sua presença. Afinal, as boas e más línguas do reino tendiam a exagerar na narrativa de seus feitos e, muitas vezes, a pintavam como um monstro. Noutras, era uma heroína. Qualquer que fosse a imagem, reações como aquela eram uma constante no seu dia-a-dia.

— Pelo visto, algumas coisas nunca mudam. — Murmurou, atraindo o olhar dele. Os cabelos loiros dos Taltos agitaram-se em sua cabeça, despencando dos ombros para as costas e um ligeiro tom vermelho lhe tomou a face ao perceber que era alvo da sua contemplação, quase arrancando um riso da Castir.

Virnan lhe tomou a mão e encostou a testa nela em um gesto de humildade e gratidão. Tinha nos lábios um sorriso capaz de amolecer uma pedra. Sentiu o rapaz tremer, enquanto Lyla não escondia o deboche na face. Ele se endireitou, desmanchando-se em um sorriso acanhado, fez uma reverência e partiu, levando a tesoura que trouxera para que cortasse os cabelos e os restos da refeição.

Você não presta. — Cantarolou o spectu, interpretando seu gesto erroneamente.

Ela tinha voltado a fitar seu reflexo, passando as mãos pelos cabelos, agora, curtos. Ainda que parecesse com a Virnan do passado, jamais voltaria a ser como ela. Àquela mulher só tinha conhecido barreiras para superar e cada vez que ultrapassava uma, as outras se tornavam maiores.

Passou a mão sobre a túnica, demorando-se a perceber a maciez do tecido, que nunca lhe pareceu tão confortável quanto naquele momento. Mesmo não querendo admitir, sentia-se bem dentro daquelas roupas.

— Ser gentil e grata não faz de mim mau-caráter. — Retrucou, finalmente.

Diz a mulher que despedaçou dezenas de corações floras. — Provocou a outra.

Me poupe de suas provocações, você não era exatamente pudica também. Desfrutou de muitos corpos e prazeres antes de ser abatida por uma estupidez crônica e cair de amores por aquele idiota do Joran. Tenho Marie e somente ela me basta.

Em meio a uma gargalhada, Lyla a abraçou por trás, assim como fez antes que ela entrasse no banho. Novamente, a sensação de unicidade as tomou. Mas o contato começava a se tornar reconfortante para ambas e os desgostos que a Castir guardava contra a meia-irmã caçula desapareciam aos poucos.

A risada dela lhe preencheu os ouvidos, afastando de vez o incômodo que retornar à antiga aparência lhe causava.

Quando a coloquei em seu caminho, jamais imaginei que pudessem se apaixonar. Você não se apegava a nada ou alguém por muito tempo.

Virnan pousou a mão sobre a dela em sua cintura. O reflexo de ambas no espelho revelava pequenas semelhanças, que passavam despercebidas a qualquer um que não soubesse do seu parentesco. Apesar da cor e formato diferente, Lyla possuía a mesma malícia que ela nos olhos, o mesmo sorriso irônico, a mesma mania de mordiscar os lábios quando estava perdida em pensamentos. Havia muito mais, era apenas uma questão de observação.

— É irônico ter vivido tanto tempo para encontrar o amor nos braços de alguém que se entregaria à morte de bom grado. — Confessou.

Talvez por isso, o que sentem seja tão forte ao ponto de conseguirem isso — ergueu a mão dela, na qual uma tatuagem semelhante a de Marie se destacava. — Em muitos aspectos, ela é diferente de você, mas no tocante a sacrifícios, ambas se entregariam à morte pelo bem de seu povo sem pensar duas vezes. Ora, foi mais ou menos isso que você fez no passado ao usar aquela pedra, e era exatamente isso que ela iria fazer naquela noite.

A Ordem: O Círculo das ArmasWhere stories live. Discover now