Mirides

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*

O sol estava prestes a nascer, quando Virnan e Lyla retornaram para Flyn.

Em vez de ir em busca de uma cama, como o corpo clamava, a castir sentou em um dos bancos no jardim do palácio. O spectu lhe fez companhia e, juntas, assistiram ao raiar do dia.

— Você consideraria fazer um voto definitivo comigo? — Lyla indagou, após um longo tempo.

— Não.

— Porque me odeia por ter tirado Zarif de você ou há outra razão?

Virnan inspirou profundamente, afastando o olhar do firmamento para ela. Não precisava do laço para reconhecer a ansiedade dela pela resposta. Quis sorrir, mas sentia-se cansada demais para fazê-lo no momento, ainda mais quando o assunto começava a rumar para algo indigesto e ainda muito doloroso.

— Eu não te odeio, Lyla. Já disse isso várias vezes. — Apertou as mãos unidas sobre o colo e continuou: — Depois que essa confusão acabar, você não precisará continuar se punindo.

— Eu não estou me punindo! De onde tirou isso?

A deminara fitou as próprias mãos. Fez uma pena longa crescer no dedo indicador, até que se desprendeu e ele retornou a aparência normal. Ela girou a pena diante da face e admirou o vermelho intenso dela, explicando:

— Eu fiz escolhas que não queria fazer porque não podia fugir da responsabilidade. Afinal, a coroa me pertencia. — Endireitou-se no banco e tornou a fitar Virnan. — Decidi me prender a adaga para orientar e ajudar você quando o momento chegasse, mas permanecer ao seu lado como spectu nada tem a ver com responsabilidade e culpa.

Ela entregou a pena a Virnan, que também se deixou admirá-la por um momento longo, antes de perguntar:

— Então, por que você quer continuar?!

Lyla sorriu, triste. Pousou a mão na perna dela, fazendo um carinho singelo e rápido.

— Pelo mesmo motivo que me levou a ir atrás de você dezenas de vezes, lutando contra a barreira de rejeição e raiva, que ergueu quando descobriu nosso laço de sangue. Quero fazer isso porque você é minha irmã, minha melhor amiga, e eu te amo! Achei que isso não precisasse ser explicado entre nós. Pelo menos, não agora.

Virnan engoliu o nó que se formou na garganta com esforço. Não tinha ideia de quantas vezes a expulsou do acampamento auriva, durante a guerra pelo trono. Mas Lyla sempre voltava e, a cada vez que ela o fazia, sua resistência diminuía. Até que ruiu de vez e parou de se importar com a presença dela no local. Contudo, ainda manteve uma distância segura da então princesa do Sul.

Se o exército do Leste não tivesse atacado o acampamento durante a calada de uma noite fria, cuja a primeira neve do inverno despencava do céu negro, talvez tivesse continuado usando seu orgulho e raiva para mantê-la distante. No meio da gritaria, do som metálico das espadas a se chocarem, do sangue que lavava o chão e maculava a neve que começava a se acumular, a então protetora só pensava em encontrá-la. Quando isso aconteceu, já não lembrava mais o motivo de estar com tanta raiva, só queria tirá-la daquele lugar a qualquer custo e mantê-la segura.

— Você não é um espírito natural, Lyla. Sabe o que vai acontecer conosco quando eu morrer. Seremos uma só pessoa. Você não poderá renascer ou seguir adiante e visitar os mundos além de Inamia. Estará eternamente ligada a mim.

— E o que há de ruim nisso? Acha que não pensei nessas coisas? Elas não saem da minha cabeça, desde que fizemos o pacto. E quanto mais penso nelas, mais tenho certeza de que é isso que desejo. Estar ligada a você desta forma me deixa completa de uma maneira que jamais pensei sentir. É como se tivesse nascido exatamente para isso.

A Ordem: O Círculo das ArmasWhere stories live. Discover now