Sob a luz do luar

247 37 0
                                    

*
— No que está pensando?
Marie afastou a vista das prateleiras repletas de livros e pergaminhos para se concentrar na tia. Gesticulou:
"Naquela noite." — Respondeu, complementando a frase ao fazer um círculo no ar.
— Fala do ritual?
Confirmou com um inclinar de cabeça. Alguns fios do cabelo castanho deslizaram sobre seus olhos, dando-lhe um ar quase infantil sob a luz que adentrava pela janela.
— Foi uma noite interessante — admitiu Melina.
Os dias de repouso devolveram a vitalidade à sua fisionomia. Até mesmo a idade avançada parecia ter diminuído e um sorrisinho discreto imperava entre seus lábios, mesmo quando não desejava fazê-lo. Marie apreciava vê-la daquela forma e atribuía essa transformação ao círculo Castir e os diversos acontecimentos daquela noite.
— Confesso que também me pego pensando nas surpresas que vivenciamos. — A Grã-mestra continuou, aumentando o sorriso. Fez uma pausa, analisando-a com apuro. — Você está com medo?
O banco em que Marie sentava rangeu quando ela se empertigou e confessou:
"Me faço de forte, mas tenho medo o tempo todo. Mas não quero que ela saiba." — Baixou a vista para a tatuagem na mão, deixando claro que falava de Virnan.

Melina fez um gesto displicente e espalhou sua aura mágica à volta delas, enquanto comentava, condescendente:
— Acho difícil que não tenha percebido. Observadora como é!
Marie concordava, mas não podia fugir daquela sensação. Como Virnan tinha lhe dito, certa vez, sentir medo era bom, pois lembrava às pessoas do que era realmente importante para elas e o que tinham de fazer para defender isso. Mesmo assim, era difícil se manter firme quando pensava na noite do ritual. A esposa já tinha muito com o que lidar e não queria que se preocupasse com suas inquietações.
Esperou alguns segundos até ter certeza de que era mesmo seguro falar. Pigarreou duas vezes antes de repreender a tia:
— Anda fazendo isso com muita frequência. — Fez um gesto para a luz que ela emanava e que, aos poucos, foi suavizando até não ser mais visível. — Não quero que se canse.
Melina deslizou um dedo pela madeira lisa e fria da mesa que ocupavam. Era tão lustrosa, que quase podia ver seu reflexo nela, o que a recordava da mesa em sua biblioteca particular na Ilha Vitta. Sentiu um pequeno aperto de saudade ao imaginar como as coisas estariam no seu lar.
Ergueu uma das sobrancelhas.
— Acha que só Virnan aprecia ouvir sua voz?! — Estalou a língua, fingindo estar chateada.
Descansou o queixo numa das mãos, enquanto a outra deslizava até o livro aberto à sua frente. Brincou com as páginas, sem lhes dar maior atenção.
— Sou uma velha; qualquer coisa me cansa hoje em dia. Mas não considero poder conversar com você normalmente, um desperdício de energia.
A tranquilidade que emanava e o carinho contido nas palavras, fizeram a mestra relaxar um pouco e perder-se na contemplação do vai e vem de Tamar entre as prateleiras. Era a primeira vez que visitavam a biblioteca do palácio, mas a Mestra dos Escritos parecia bem à vontade no ambiente, como se aquela fosse sua casa. Atraía a atenção dos bibliotecários locais, que se reuniam à sua volta com perguntas sobre o mundo que ainda não conheciam e dispensava respostas e sorrisos gentis à medida que o assunto se aprofundava.
— É como se ela fosse algum tipo de celebridade para eles. — A grã-mestra comentou. — Posso compará-la, facilmente, a uma das Poetisas de Amaranto, que arrastavam multidões em suas apresentações nos festivais de inverno, quando eu era criança.
Marie inclinou a cabeça para o lado, evocando lembranças dos festivais aos quais ela se referia.
— Era a mesma coisa na minha juventude. Creio que as poetisas ainda causem esse alvoroço. — Deslizou a mão pelo tecido negro da blusa que usava. Lhe agradava as roupas florinae, de corte simples e tecidos finos e delicados, mas resistentes. Continuou a falar de Tamar: — Sempre que a encontro em meio aos livros, não consigo deixar de compará-la com a moça tímida que me servia em Midiane. Amo aquela menina pela devoção que me dedicava e por não ter me deixado sozinha, mas o meu amor pela mulher que ela veio a se tornar é infinitamente maior. Me alegra saber que está feliz com Fantin e que este lugar lhe faz bem depois de tudo pelo que passou. — Seus lábios tremeram ao recordar a morte da amiga e a dor que se assentou em seu peito naquele, quase insano, momento. Custava-lhe acreditar que fora há poucos dias e era, sem dúvida, uma lembrança que queria jogar no esquecimento.
— Creio que este reino fez bem a todas nós. Me refiro no sentido espiritual e de autoconhecimento.
Marie uniu as mãos, encarando o céu além da janela às costas da tia. Uma nuvem negra se apossou do seu semblante e voltou a se concentrar nela.
— Às vezes, tenho medo de que isso tudo não passe de um sonho. — Declarou. — Temo acordar a qualquer momento e me encontrar deitada sobre um altar cerimonial.
Baixou a vista para as mãos, novamente.
— Não consigo esquecer nossa visita à "ele". — Confessou.
Um arrepio percorreu a espinha de Melina.
— Você sabe que não foi planejado — recordou ela. Também não conseguia se livrar de tais lembranças.
— Eu sei. Mas não estava preparada para encontrá-lo naquele momento e descobrir que tem uma aparência... — interrompeu-se, sem saber exatamente como continuar.
— Acho que a palavra que você procura é "inocente". Também me surpreendi, no passado. Ele é bonito demais para alguém que cometeu tantas barbaridades contra seu próprio povo e o nosso. É isso que pensa, certo?
— Sim. Esperava que sua aparência fosse condizente com sua maldade. — Admitiu à contragosto. Estava ligeiramente envergonhada por fazer esse tipo de julgamento.
A tia percebeu o motivo do desconforto que apresentava e, novamente, lhe dirigiu um sorriso benevolente e compreensivo.
— É cruel reconhecer que pensamos de maneira tão fútil. A aparência não tem nada a ver com o que vai no coração de alguém. Todos sabemos disso. Mesmo assim, nos deixamos levar por ela e logo rejeitamos a possibilidade de estreitar laços com uma pessoa, apenas porque está distante dos nossos frágeis padrões de beleza. Não se sinta mal por isso.
Marie concordou, ainda incomodada com a lembrança do rosto de Érion. Naquela noite, quando Virnan retornou para o seu círculo e começou a sussurrar as palavras para encerrar o ritual, um forte nevoeiro as envolveu e quando se dissipou encontravam-se no centro de um amplo salão, onde as paredes ostentavam tapeçarias vermelhas e armas. Tudo parecia ter sido cuidadosamente escolhido para irradiar uma mistura de poder e ódio. Assim, a mestra pensou. Mas depois lhe ocorreu que esta poderia ser apenas uma manifestação da aura do dono daquele lugar.
Como ainda estavam ligadas pelo laço do ritual, todas captaram a profusão de sentimentos conflitantes que tomou a guardiã ao reconhecer o antigo lar da Ordem Castir. Aquele era o templo onde treinou e morou até ser consagrada oficialmente uma Castir e, atualmente, era o lar de Érion, também conhecido como a "Cidade dos Eleitos".
Em algum lugar da vasta biblioteca, alguém deixou um livro cair. O som, apesar de distante, trouxe a atenção de Marie de volta ao presente. Ela mordiscou o lábio inferior e cerrou os olhos por um segundo.
— Mas se ele é tão poderoso ao ponto de nos atrair em meio à um ritual, me pergunto se é mesmo possível vencê-lo.
Melina encerrou a brincadeira com as páginas do livro; o fechou devagar e empurrou para o canto da mesa, onde havia uma pilha de livros escolhidos por Tamar. Novamente, entendia e compartilhava as dúvidas da sobrinha, mas não estava disposta a gastar energia com conjecturas.
— A rainha não previu os resultados disso. Então, como em qualquer outra situação na vida, cabe a nós fazermos nosso destino. Talvez a gente perca, mas pelo menos iremos tentar fazer algo à respeito.
Esticou o braço até alcançar a mão dela e demorou-se a lhe fazer um carinho.
— Eu não estava disposta a entregar a sua alma para ele, assim como Virnan também não estava. Ela pode ter mentido para conseguir mantê-la a salvo, mas o fez por amor e você está feliz por isso também. O mínimo que podemos fazer é trabalhar para vencer essa guerra e construirmos um futuro pacífico para todos os povos deste mundo. — Deu de ombros, projetando o lábio inferior para frente. — Reconheço que a paz que almejo pode ser um tanto utópica, mas não deixa de ser um sonho agradável. Isso à parte, desejo um futuro que você possa compartilhar com a mulher que ama e que eu possa desfrutar dos poucos anos que me restam, assistindo essa felicidade. — Soltou a mão dela, tornando a sorrir.
Passos suaves chamaram a atenção delas para o retorno de Tamar. Ela trazia meia dúzia de pergaminhos junto ao peito. Tinha um sorriso ligeiramente incomodado pela presença de Bórian, que seguia ao seu lado. Quando alcançaram a mesa, a mestra largou-se em um dos bancos, disfarçando um suspiro. O espírito cumprimentou Melina e voltou-se para Marie, indagando:
— Poderia ter alguns minutos de sua atenção?

A Ordem: O Círculo das ArmasOù les histoires vivent. Découvrez maintenant