4. Fase I - Kurushimi

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Nota: Kurushimi - dor, sofrimento




Tóquio – 5 de janeiro de 1869

Ano 2 da Era Meiji, dois meses após o massacre.


Com as mãos apertadas sobre a boca, Uchiha Sasuke sufocou o choro.

Encolhido contra a parede úmida e fria, as pernas dobradas e a testa encostada nos joelhos, tentou conter os soluços que ansiavam a desabrochar, embora não possuísse quaisquer forças para fazer desaparecer com as lágrimas que, em abundância, fluíam de seus olhos. Amedrontado, prendeu o fôlego – àquela altura, quase inexistente – ao ouvir aqueles homens correndo à sua procura, usando o resto de sua fé para clamar desesperadamente aos deuses por misericórdia: "por favor, hoje não".

Porque sequer havia se recuperado da última surra, os hematomas ainda vívidos na região de suas costelas e rosto, manchas púrpuras que doíam a cada movimento e, aos poucos, tornavam-se esverdeadas. Foi apenas quando o ruído oco das sandálias batendo na neve desapareceu que deixou a mão descender em queda lenta, sorvendo o ar pelos lábios entreabertos, uma névoa branca de frio saindo a cada sopro.

Com os olhos úmidos de choro, encarou o montinho de arroz empapado no colo, sentindo o estômago protestar. Retirou uma pequenina porção com os dedos magros e colocou-a na boca, mastigando o mais devagar que pôde, pois os meses de dificuldade lhe ensinaram que tentar saciar-se de uma só vez provocava dores na barriga e crises de vômito. E assim, comeu um pouco daquele quase nada, apertando cada grão no céu da boca, adestrando a si mesmo a suportar o desespero da fome e reprimir o impulso de devorar.

Aquele instinto de autopreservação custou a ser adquirido, acostumado demais às regalias e confortos da aristocracia para compreender de imediato que as habilidades ensinadas por seus sensei* não lhe seriam úteis ali. Ler, escrever, manejar uma espada ou conhecer estratégias militares não lhe deram vantagem alguma no mundo real, tampouco ser uma criança poupou-lhe da crueldade da vida nas ruas. De fato, sua nobre criação apenas dificultou sua adaptação e o tornou mais suscetível à maldade humana.

Em seus primeiros dias na cidade, dotado da cortesia e honra que aprendera em sua terra natal, Sasuke se recusou a acompanhar outras crianças abandonadas que andavam em bando e roubavam para sobreviver. Estivera ali outras vezes com seu pai e, por ser sempre tratado com muita gentileza e respeito, em vã esperança acreditou que o mesmo suceder-se-ia quando o reconhecessem, quiçá acolhendo-o em seus próprios lares.

Mas como se a queda de seu clã desencadeasse uma espécie de ira aos samurais, mesmo aqueles que conheciam sua identidade ignoraram seu clamor, tratando-o como um vagabundo qualquer, dando-lhe empurrões, pontapés e xingamentos acaso ousasse se aproximar demais. E quando a fome se tornou insuportável, chegara à terrível conclusão de que ser educado e sobreviver naquele lugar simplesmente não combinavam, decidindo colocar a própria existência acima das regras de comportamento que lhe fora ensinado desde o nascimento.

Ah, mas uma criança tão nobre não sabia ser furtiva e rápida como aquelas outras que, tão acostumadas com a realidade das ruas, conseguiam contornar as situações de perigo e escapar facilmente de comerciantes que os perseguiam. Sasuke fora apanhado tantas vezes em suas tentativas que fraturou suas costelas ao tentar pular o telhado em uma fuga, outras tantas fora surrado quase ao ponto da morte. Quase, pois ainda que fosse um mendigo qualquer aos olhos de todos, era capaz de provocar um pouco de remorso devido à pouca idade.

Kurushimi - A Gueixa e o Samurai (SENDO TRANSFORMADA EM LIVRO)Where stories live. Discover now