8. Fase I - A Cortesã de Fogo

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Notas da autora: Você encontra o significado das palavras marcadas com asterisco (*), assim como de todos os sufixos usados (ex: -dono, -sama) em Glossário & Honoríficos.

Leiam as notas finais para curiosidades. Lembrando que as músicas colocadas no início de cada capítulo são as que eu utilizei para escrevê-los.

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Cidade de Yokohama, Kanagawa – 1839

Era Tokugawa, 29 anos antes da invasão.


A menina abriu os olhos.

Ao seu redor não encontrara nada além de calor e escuridão, paredes quentes e macias que a acolhiam com ternura. Diante de seu rosto, um longo cordão flutuava nas águas mornas e, intrigada, tentou esticar o braço para alcançá-lo, maravilhando-se com a descoberta de que ganhara controle sobre os próprios músculos, até então, completamente adormecidos. Abriu e fechou a mão minúscula para segurar o fio da vida, enfim ciente de sua própria existência, de que era um alguém, a protagonista daquele universo penumbroso.

E como uma nata exploradora, descobriu que possuía também um rosto, pernas, desejos e pensamentos. Em mesma velocidade, compreendeu que embora estivesse flutuando solitária naquele mundo desconhecido, havia outro ao lado de fora, um tão destoante ao silêncio do seu onde nada soava além de batidas ritmadas de um coração, mas constituído de ruídos distintos provindos de todas as direções.

Certo dia, um som único a fizera emudecer seus pensamentos. Era a voz de uma jovem mulher, o canto bonito e melancólico sobressaindo-se a todos os outros, penetrando as barreiras de sua morada, envolvendo-a de tal maneira que seu pequeno coração se acelerou.

Não sou nada além de um pedinte
E eles são pessoas ricas
Com bons obi e bons kimonos.
Quem irá chorar por mim
Quando eu morrer?
Apenas as cigarras nas montanhas.

Fascinada, notou que sentia as emoções complexas daquele outro ser em sua própria carne como se fossem apenas uma. Dois corações dentro de um único corpo, duas almas compartilhadas: mãe. E tudo sobre ela – aquela existência perfeita a quem devia sua própria vida – era um motivo de sua completa devoção. Passou a amar o som de sua voz quando cantarolava, o modo como suspirava ao sentir a água do mar ricochetear em suas canelas, o sorriso que surgia quando a chuva caía.

Enfim decidiu conhecê-la com as próprias mãos, querendo demonstrar a ela todo seu afeto. Esticou os braços o máximo que pôde, tocando na parede translúcida que as separava, movendo todo seu corpo na água para alertá-la de que estava ali dentro, viva, pulsante, amando-a como o ser divino que era, almejando ser retribuída, reconhecida, desejada.

Mas a mulher sobressaltou ao senti-la, tocando-a de volta no mesmo lugar, apertando o outro lado da muralha de carne. Fora um toque seco e assustado, acompanhado de um choro doloroso que reverberou alto naquele outro mundo. "Ah, não", ouviu-a lamentar, sua voz abafada pelas camadas que as separavam. E desta forma compreendeu – com toda dor que lhe cabia – que não era desejada ou amada, mas repudiada.

Alarmada, sua mãe caçou a agulha de sashiko*, abrindo as pernas para espetá-la contra a parede uterina, tentando livrar-se do pequeno ser não desejado. Juntas, sentiram uma dor lasciva, sangraram e enfraqueceram, mas a menina não desistiu de viver, resistindo às fracas contrações que vieram em seguida e a pressionaram para sair, agarrando-se ao corpo dela com todas as suas forças.

Kurushimi - A Gueixa e o Samurai (SENDO TRANSFORMADA EM LIVRO)Where stories live. Discover now