9. Fase I - Dajaku

1.2K 163 150
                                    


Notas da autora: Dajaku - fraqueza, fragilidade

Você encontra o significado das palavras marcadas com asterisco (*), assim como de todos os sufixos usados (ex: -dono, -sama) em Glossário & Honoríficos.




Tóquio, Distrito de Yoshiwara – Março de 1872

Ano 5 da Era Meiji


Não reconheceu a figura refletida no espelho.

Como se houvesse desassociado sua consciência daquele corpo, parecia ser a primeira vez que se olhava verdadeiramente, encontrando, não mais a criança ingênua de outrora, mas uma mulher vestida em seda cor-de-abóbora, o rosto branco como uma máscara, lábios pintados de vermelho, dois grampos de ouro ornamentando o coque majestoso.

Quantos anos sua alma teria envelhecido desde então?

Porque não era a Chiyo ali, não a verdadeira. Aquela era uma fabricação de Yoshiwara, uma cortesã de Lótus Celeste que surgia todas as noites e frequentava festas com música, bebidas e clientes, homens que se deitavam com ela e partiam após algumas horas, deixando para trás cheiros e sabores que ela desprezava.

Para sobreviver àquela nova vida, precisou enterrar a filha de Haruno Mebuki no passado, embora vez ou outra se recordasse da criança rejeitada, sorridente e de personalidade vibrante com traços tão destoantes aos do clã de cabelos róseos e olhos verdes. E ainda que soubesse que o fizera por um instinto de autopreservação, perguntou-se quando foi que havia perdido suas características tão peculiares, a impulsividade e língua afiada para tornar-se alguém que acatava as escolhas de outros.

"Oh", pensou ela. Foi quando dois anos após sua chegada fora exposta em uma jaula com outras meninas virgens e passou pela cerimônia dolorosa do mizuage*, despertando no dia seguinte com a compreensão de que nunca mais seria a mesma e que rever sua irmã seria uma mera ilusão. Porque cada mísera moeda que ganhava com clientes não pertencia a ela, nem as roupas, as joias, as pinturas, sua própria alma.

Ajoelhada ao seu lado, Karin mergulhou o tecido branco na tigela cheia de água e usou-o para limpar o canto de seus lábios. Ali, na pintura vermelha, sangue escorria e enchia sua boca com um sabor ferroso.

Sangue.

E não era ele o culpado de tudo na vida de uma mulher? Entrelaçando o destino de todas elas, guiando-as para um mesmo caminho? Não fora sua mãe que sangrara ao trazê-la ao mundo e, anos depois, fizera o mesmo para protegê-la? Não fora ele que desceu por suas pernas para avisá-la de sua maturidade e que, anos depois, a transformou em uma mulher completa, derramado nos lençóis por um homem que pagou o bastante para deflorá-la?

Era engraçado como estava tão acostumada a ele que quase havia se tornado apática, sequer surpreendendo-se quando notou-o nos lábios, ao contrário de Karin que parecia mais irritada que o comum ao vê-la entrar no quarto daquela maneira, como se a ofensa houvesse se estendido também a ela.

— Eu vou matar ele! – vociferou – Eu juro que vou.

Chiyo sorriu.

— Não vai fazer nada disso. – Afastou delicadamente a mão da cortesã. – Eu estou bem, já disse que foi apenas um acidente. Eu o provoquei, de toda forma, não deveria ter-

— Nunca mais diga isso! – interpôs, irritada – Nunca tente tirar a culpa de um homem, está me ouvindo? Nada do que você tenha dito ou feito justifica esse comportamento.

Kurushimi - A Gueixa e o Samurai (SENDO TRANSFORMADA EM LIVRO)Where stories live. Discover now