20. Fase II - Ittemairimasu

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Nota: Ittemairimasu - expressão formal de "até logo" ou "vou e retorno".


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Tóquio, Lótus Celeste – 31 de maio de 1877

Ano 10 da Era Meiji


O gorjeio dos rouxinóis acima das árvores a despertou.

Abriu os olhos, aos poucos acostumando-se com a claridade difusa que transpassava a cortina de gaze sobre a janela. Sentia o corpo todo doer, sobretudo a região de sua coluna, respirando fundo e gemendo baixinho ao aprumar-se no tatame, tamanho desconforto.

Havia passado a madrugada inteira ao lado do futon de sua protegida, vigiando seu sono agitado como uma mãe guardando o leito do filho adoecido. Aquela noite mal dormida cobrara o preço cedo demais, fazendo sua cabeça pulsar em um prenúncio de enxaqueca. Ainda entorpecida de sono, a gueixa coçou os olhos e bocejou, notando como Sakura se moveu abaixo do edredom ao ouvi-la.

Suspirou, engatinhando até sua cama para garantir que ela estava bem e a encontrou profundamente adormecida, o semblante cheio de uma expressão entristecida e pueril, os olhos inchados de choro surgindo sob a cascata cor-de-rosa de seus cabelos. Aquilo a fizera sentir uma pontada de culpa, apertando os lábios para segurar o choro que ameaçou desabrochar.

Pois era sua obrigação garantir que ela jamais se machucasse ou estivesse exposta aos iminentes perigos que uma mulher corria interagindo com homens em um mundo onde eram os protagonistas. Ah, ainda assim... Tudo acontecera tão rápido que sequer tivera tempo para reagir. E como poderia? Quem era ela para impedir o general, um homem a quem o próprio Imperador concedia privilégios e permissões para agir como bem entendesse? Quem era ela, comparada a um homem que aos vinte e seis anos já comandava um exército inteiro e possuía governadores e nobres na palma de suas mãos?

Céus, não era ninguém.

E nenhum outro pareceu notar quando ela foi levada contra sua vontade – ou fingiram não fazê-lo, como se questionar os feitos do general fosse contrariar a autoridade do próprio Soberano. Ao seu redor, como se parte de um delírio em massa, todos fingiram que a menina sequer havia estado ali, em primeiro lugar, comendo, bebendo e festejando como se nada houvesse acontecido.

Todos.

Exceto aquele rapaz que acompanhava Ichi-san, o que tocara na mão da menina e despertou a fúria do general, parecendo atento demais nos gestos de Sakura para alguém que a acabara de conhecer. Sobretudo porque, poucos minutos após o corrido, levantara-se abruptamente para ir ao corredor como se a procurasse e Orochimaru retornou em seguida, furioso e contrariado.

Quando o evento chegara ao fim – e com o coração prestes a sair pela boca – correu para procurá-la e encontrou-a no jardim, encolhida e chorosa como a pequena menina de anos atrás. E ainda que negasse veementemente que Orochimaru a houvesse machucado, não conseguia acreditar. Os vestígios estavam ali, translúcidos como água: o kimono rasgado, os cabelos desfeitos, a maquiagem borrada, os lábios manchados e o hematoma púrpura na pele alva de seu pescoço.

E Hinata abraçou-a e confortou-a, querendo extrair a verdade do que ocorrera, mas Sakura fechou-se como um túmulo, calada durante todo o caminho para casa.

Alisou a bochecha rosada e quente da menina adormecida antes de se levantar, o ruído de seu kimono no chão a fizera virar-se outra vez, movendo ambas as mãos para aproximá-las da face. E ali, apertado entre seus dedos, viu o tecido azul-escuro do haori que fora colocado em seu corpo na noite anterior.

Kurushimi - A Gueixa e o Samurai (SENDO TRANSFORMADA EM LIVRO)Where stories live. Discover now