6. Fase I - Kutsuu

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Notas: Kutsuu - agonia, sofrimento, dano físico




Kagoshima, Sul do Japão – 20 de março de 1872

Ano 5 da Era Meiji


Raijin – o poderoso Deus Trovão –, insatisfeito com a quietude que protagonizava o amanhecer de Kagoshima, atacou os céus furiosamente. Aos poucos, o horizonte ensolarado acima das praias de areia branquíssima se encheu de nuvens densas e cinzentas, anunciando o começo de uma tempestade que não demorou a se desenrolar.

No início, pequeninas gotas de chuva tilintaram nas telhas das casas e dos comércios da cidade rural, amolecendo o chão duro de terra até que poças de lamas se formassem e pessoas afundassem os pés nelas, sujando as meias brancas das mulheres e penetrando entre a sola dos pés masculinos e as sandálias de palha amarradas por tiras. E apesar de todo mau humor intrínseco a um dia de chuva inesperado em plena primavera, nenhum deles ousou reclamar ou desistir de seguir seu caminho colina acima, rumo às fazendas que ali existiam.

Porque ao contrário da vida urbana, luxuosa e agitada de Tóquio, Kagoshima ainda persistia na simplicidade e tradicionalismo de outrora.

O turista desaviado não encontraria grandes restaurantes, parques, casas de chá requintadas com a presença de gueixas estonteantes, muito menos bordeis com cortesãs cujo valor de uma noite equivalia ao salário anual de um simples trabalhador. Os moradores daquela região não se importavam em se expor ao sol e ganharem um tom bronzeado na pele, nem em molhar-se na chuva. As mulheres não eram obcecadas com a própria aparência ou disputavam em elegância e sofisticação, muito menos sabiam qual era a textura de um kimono de seda e o peso de um kanzashi cravejado de pedras preciosas, tampouco havia tecnologias trazidas do ocidente ou estrangeiros por ali.

Sendo assim, a tempestade que na capital faria donzelas e senhoras abrirem seus guarda-chuvas pintados acima de suas cabeças e nobres senhores contratarem uma carruagem para protegê-las do tempo, sequer causou comoção na rotina simples da cidade. Quiçá incentivou os trabalhadores braçais a se esforçarem ainda mais, visto que a chuva lavaria o suor constante e os manteria frescos ao longo do dia.

Na fazenda de Watanabe, as servas se apressaram para recolher os lençóis e kimonos limpos estendidos no varal próximo ao riacho que corria aos fundos da casa, colocando-os dentro de baldes de bambu antes de carregá-los para dentro dos dormitórios a fim de dobrá-los apropriadamente. Outras muitas corriam para fechar as portas abertas para a varanda que circundava o jardim, usando panos de algodão para secar os respingos de água atrevidos no chão dos quartos.

Dentro da cozinha, as jovens ajudantes – trajadas em roupas impecavelmente brancas – corriam nas pontas dos pés, silenciosas como felinos, surgindo e desaparecendo através dos painéis deslizantes, carregadas de bandejas de laca cheias de comida quente e perfumada, repondo os pratos a cada retorno.

Ainda letárgica de sono, Mei abafou um bocejo com as costas da mão, mantendo os olhos fixos na chaleira de ferro aquecendo sobre as chamas do irori*, atenta ao distinto som que o vapor d'água fazia quando atingia a temperatura correta.

Comparado à rotina árdua de suas consortes, o trabalho de Mei era ínfimo, sendo ela a responsável por servir chás ao longo do dia e fazer companhia à sua senhora enquanto ela lia e bordava no quarto. Atrás de si, sentia os olhares reprobatórios das outras mulheres, tão imponentes e cheios de desdém que ocasionavam-lhe arrepios na nuca, invejando seu pouco serviço, sequer sabendo que ela faria de tudo para ocupar seu dia longe de sua patroa que não fazia nada além de olhá-la como uma ameaça.

Kurushimi - A Gueixa e o Samurai (SENDO TRANSFORMADA EM LIVRO)Onde histórias criam vida. Descubra agora