Capítulo 1. Pacientes

55 3 1
                                    

Parte 1
Hospital

Sétimo círculo do Império
Oásis

Acordei com o som dos gritos do lado de fora.

Abri os olhos para as luzes sempre acesas, sentindo nas narinas um cheiro familiar que eu não sentia em um bom tempo... Um cheiro que me foi como gota de água na língua de um viajante sedento no deserto, depois de viver um número incontável de aventuras que terminaram mal. Inspirei bem fundo. Aquele era o aroma de mineral engolfo em carne, como o de lâminas mergulhadas em...

Sangue. E um que eu conhecia muito bem, de todas as vezes em que vales se abriram na palidez da minha própria pele...

Sangue humano.

Um humano que gritava tão alto que, mesmo se afastando no corredor, eu ainda conseguia ouvi-lo. Talvez ele também tivesse passado por uma jornada que teve um fim ruim... Pelo menos um que valesse o esforço daqueles gritos.

Eu já deveria estar acostumada com esse som, uma parte tão grande do meu trabalho, mas tolerá-los era uma arte difícil... Principalmente quando alguns se impregnavam em mim tão profundamente quanto cicatrizes; e davam à minha imaginação dores que eu esperava nunca sentir.

Todo e cada noxdiem eu acordava para acolher os infortunados - ou estúpidos - e poupá-los da dor que causava aqueles gritos. No fundo, eram todos só infortunados de estar aqui (alguns inclusive com o infortúnio de serem estúpidos), mas eu não conseguia fugir de me perguntar o que levava uma criatura a se colocar em um sofrimento como aquele... O que levava um ser a viver tanta dor que nada podia restar de si senão seus gritos, ecoando por corredores vazios e implorando por alguma espécie de anestesia para dores que estavam além do corpo?

Não importava quantos anos eu estivesse trabalhando ali. Eu continuava querendo me manter longe daqueles gritos.

Mas, dessa vez, me senti compelida a segui-los.

Não porque a dor estava sendo sentida, mas por quem estava: um tipo raro de viajante infortunado naquela porção do Império Interestelar.

E um que eu estava esperando por muito, muito tempo.

• • • ֍ • • •

Clover já estava atrasada e sua carona ainda tinha decidido demorar. O pé batia no chão furiosamente, os olhos voavam pela rua caótica e nenhum sinal do carro que esperava. Ela estava começando a sentir a cabeça esquentar... Mas então o veículo surgiu na esquina. A moça entrou no carro, batendo à porta com mais força do que o normal. O motorista fingiu não perceber. Ele voltou para o fluxo frenético da rua e então, alguns metros depois, o Artefato despencou dos céus e esmagou o carro da frente, salvando a vida de Clover por 2 minutos de atraso.

Ela deu 5 estrelas.

Eu não sei, na verdade, se foi exatamente assim que aconteceu, mas essa é a forma como os filmes contaram essa história. Talvez nunca nem tenha existido uma Clover, - quando existiu um humano tão sortudo? - mas muitas pessoas, com vários outros nomes, presenciaram a chegada do Artefato na Terra.

• • • ֍ • • •

Me levantei do chão entre os produtos de limpeza e bati a cabeça em uma das prateleiras e o barulho que fiz só não foi maior do que os gritos do lado de fora. Droga. Eu tinha me escondido na sala do zelador para tirar uma soneca em segredo, afinal; e a última coisa que um segredo precisava era ser descoberto. Nem todos no Oásis tinham de ter tantas horas de sono quanto os humanos, então não entendiam o quão improdutivos nós éramos se não gastássemos algumas horas sendo improdutivos; e eu precisava me esconder se quisesse um sono que fosse metade decente. Eu ainda não o tinha dessa vez, mas saí para o corredor e segui os ecos distantes dos gritos até a porta branca de um quarto.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now