Capítulo 2. História da Doença Atual

32 1 0
                                    

Eu não falaria das minhas negociações sem um benefício em troca – minha liberdade, no caso. Eu sabia as implicações de revelar demais, principalmente quando tinha segredos que podiam me levar para masmorras... Mas ela era uma iátrica, não era? Sua confidencialidade deveria valer algo. Eu queria que ela soubesse o suficiente para acreditar no que eu acreditava – sendo verdade ou não.

Assim, a contei o que tinha me levado até ali:

Naquela manhã eu tive de fazer uma parada no mundo dos fevinos. Estacionei a nave diante das portas de um galpão velho e desci armado – só por precaução – para entregar o que tinham me encomendado.

A iátrica não perdeu tempo em me interromper:

– O que eles encomendaram? – Ela me encarava como se minhas palavras importassem e, ao mesmo tempo, como se não passassem de ferramentas que ela precisava para diagnosticar o mistério que eu deveria ser aos seus olhos.

– Eu prefiro não me comprometer com detalhes.

– Muitas vezes as respostas estão nesses detalhes. – Ela se inclinou de novo, como se eu não pudesse entendê-la sem a iminência do seu corpo. Quando inspirei, percebi que aquele centímetro de proximidade me trouxera sua fragrância, um aroma petrichor que me lembrou de tardes chuvosas que já não existiam mais.

Por que ela tinha se perfumado? Não era como se os alienígenas com quem trabalhava fossem se importar. Talvez ela não fizesse isso pelos outros, mas porque a lembrava da Terra... Um hábito antigo, um cheiro conhecido... Imaginei-a perfumando-se no meio da noite, deixando-se ser abraçada pela fragrância, até que o cheiro desaparecesse e a deixasse de novo com o vazio estéril do Oásis.

– Eu preciso conhecê-lo para curá-lo. – Ela continuou.

– Você não me curaria se me conhecesse.

– E você subestima meu profissionalismo. – Sorriu. E, de alguma forma, eu soube que ela ia arrancar a verdade de mim, cada mínimo detalhe... Até aqueles que eu tinha enterrado. – Continue. – Então prossegui...

Um dos fevinos foi me encontrar na porta para buscar o produto. Seu corpo era como o de um leão, pelos com escamas de cor amarelo fluorescente cobrindo toda a pele sobre os músculos, dentes do tamanho de punhos transbordando para além dos limites da boca e os olhos como um colar de pérolas brancas coroando toda a circunferência da cabeça.

– Trouxe os cartuchos? – Ele me perguntou, em outra língua. Sua voz saia em estalos formados nas profundezas de sua garganta, e eu apenas o entendi por ter passado muito tempo tentando aprender o básico de seu vocabulário, à moda antiga.

– Sim.

Passei os cartuchos e ele me entregou um saco de pedras estelares, a moeda oficial de Ítopis. Dei um passo para trás, enquanto o fevino examinava os cartuchos com uma cautela que me fez recuar outro passo, bem devagar. Quando meus pés tocaram o chão depois de três passos, o fevino ergueu os olhos para mim.

– Os cartuchos não estão cheios. – Ele rosnou.

Meus dedos deslizaram para o bolso de trás, onde eu escondia uma arma.

– Tem certeza? Melhor conferir de novo.

E me dar tempo de fugir.

– Não... – A criatura sibilou, se aproximando. Eu tentei recuar, mas esbarrei em uma parede de escamas e pelos. – Agora nós queremos o dobro.

Eu estava ferrado.

– Esse não foi o combinado. – Tentei soar calmo.

– Vocês humanos adoram fazer acordos que não vão cumprir... Vamos combinar algo novo então: você nos entrega o dobro do que encomendamos ou nós arrancamos sua cabeça. O que acha?

Engoli em seco, enquanto ainda tinha pescoço.

Eu não deveria ter concordado em entregar os cartuchos pessoalmente... Mas os fevinos não gostavam de acordos remotos – e nem de serem trapaceados. Se eu quisesse meu pagamento, tinha de arriscar a vida.

Eu já tinha perdido coisas piores.

– Tudo bem. Vou na nave buscar os outros.

Me afastei, sem tirar os olhos dos fevinos nem por segundo. Sua silenciosa permissão me deixava ir, mas ela era frágil... E o caos podia explodir a qualquer momento, quando decidissem que eu tinha me tornado a presa.

Dei um passo... Dois... Três...

E então corri o mais rápido que podia.

A nave estava tão perto, com as portas abertas, pronta para me levar para bem longe daquele inferno... Mas, quando os fevinos colocaram seus 3 pares de patas musculosas no chão, minhas pernas não foram suficientes para alcançar a nave a tempo... E um deles me alcançou.

E então me engoliu por inteiro, sem nem precisar mastigar.

– Você foi engolido?! – Guinchou a iátrica. – Um humano engolido por um fevino é algo muito ruim... – Ela tirou do bolso um pequeno caderno de capa preta e o folheou rapidamente, as páginas cheias de uma caligrafia apertada que parecia tentar acumular uma biblioteca de Alexandria dentro do bolso. Seus dedos pararam em uma página específica, agitados como se tivesse encontrado a cura para a mortalidade. – Teria sido melhor se você tivesse sido mastigado...

– E morrido?!

Ela voou em um armário e o revirou até encontrar uma fita branca, que, depois de balançar furiosamente, mergulhou no meu sangue. E então aguardou.

Eu abri a boca para perguntar o que estávamos esperando quando a gota na fita começou a brilhar. Como se meu sangue estivesse conectado a ela o escarlate nas minhas profundezas também começou a reluzir, em uma onda quente que fluiu por meu corpo abaixo da pele e ferveu desde o meu sangue até a minha alma.

O que estava... Mas então a onda alcançou minha mente e eu perdi as palavras. O espaço tinha se tornado pequeno demais, como se agora eu estivesse disputando o espaço com uma presença que falava sem voz dentro de mim... E que tinha a energia de uma supernova dentro de um frasco de perfume.

Eu me senti como se nunca pudesse falhar de novo... Mas, no fundo, eu sabia que isso era impossível.

– Você está contaminado. – Ela diagnosticou.

– Então quer dizer que não foi minha culpa?

Ela não confirmou diretamente, mas disse:

– Se não estivesse contaminado, provavelmente não teria feito o que fez...

Aquilo era suficiente para mim.

– Então pode tirar esse parasita de mim e condenar a ele.

– Não é bem assim que funciona... – A iátrica suspirou... E então eu estava de novo com a sensação de que estava ferrado. – Eu não posso tirar ele de você...

– E por que não?

Ela hesitou, evitando meus olhos e as palavras evitando sair da boca. Mas, em algum momento, o silêncio se tornou insuportável demais e a iátrica revelou:

– Porque você é o parasita.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now