Capítulo 23. Cremação

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A mão dele na parede de vidro atrás de mim deslizou até pousar em minha cintura com o toque aveludado dos seus dedos e eu me perguntava o que mais ele era capaz de fazer com eles; e como seria a sensação de sua pele sobre a minha... Me afoguei em seus olhos afogados nos meus, incapaz de desviar enquanto eu assistia sua proximidade me torturar quando não era próxima o suficiente.

– Então você vai parar de resistir e se entregar à jornada? – Sussurrei, bloqueando as luzes da Via Láctea em um eclipse.

Kadi abriu um sorriso que usava como arma... Uma bem efetiva, por sinal.

– Eu nunca fui muito bom em resistir... – Ele ronronou. – Geralmente eu simplesmente... Pego o que quero.

Minha pele se arrepiou.

– E o que você quer agora?

– Eu quero...

Antes que ele pudesse falar, porém, sirenes explodiram ao nosso redor, pintando as águas com luzes vermelhas que gritavam que estávamos em perigo.

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Corremos para o salão principal da nave e deslizamos molhados pelo piso para cair de frente nos canos das armas dos fageines, na frente do painel de controle. Atrás das janelas de vidro uma estrela azul se aproximava, tão brilhante que tive de proteger meus olhos para conseguir ver os soldados.

– O que está acontecendo?! – Recuei para longe das armas, mas os fageines continuaram as mirando nos nossos rostos. – Me deixem falar com Bleine.

Tentei me aproximar do painel, mas a barreira de soldados me impediu.

– Ela não está disponível.

Mas nós continuamos nos aproximando daquela estrela azul.

– Mas nós vamos... Nós estamos... – Apontei para a estrela, mas nenhum dos fageines parecia se importar com aquilo.

Tentei avançar para o painel antes que mergulhássemos no plasma, mas um fageine na minha frente chocou a arma contra meu rosto com tanta violência que eu desabei. Pisquei para o borrão vermelho que escorreu do meu lábio para o piso lustroso, enquanto o caos dos gritos de Kadi soava tão distante que parecia tentar me alcançar de outro mundo, além das camadas turvas de dor que me envolviam.

Eles não nos deixariam desviar a rota daquela estrela... Porque ela era o nosso destino. Senti as mãos de Kadi me puxando para cima.

Bleine estava por trás daquilo? Não... Não faria sentido. Ela precisava do que eu guardava... Só a Rainha podia estar por trás daquilo, impregnada em Ítopis com sua doença, corrompendo os soldados que nos rodeavam, se tornando a responsável pela morte da minha mãe... E agora também pela minha.

– Vocês todos vão morrer também... – Grunhi para os soldados, que sequer se moveram. – Me ouviram?! Vamos todos morrer!

Mas eles não ligavam; porque a Rainha não se importava em queimar alguns de seus soldados infiltrados nos exércitos do Império se assim pudesse destruir a esperança que eu protegia em mim. Eu conseguia vê-la se fortalecendo em Ítopis, indestrutível, invencível, até que estivesse eternizada sobre as nossas cinzas... E eu não conseguiria impedi-la.

Me voltei para Kadi, fogo em meus olhos, explosão na minha voz:

– Ele precisa sair! É a nossa única alternativa!

– Eu não sei... Eu não...

Mas eu sabia. Então gritei a plenos pulmões, em um apelo desesperado:

– GATINHO!

Kadi imediatamente desabou no chão, se contorceu em uma explosão de rugidos violentos que arranhavam sua garganta. As garras do fevino emergiram rasgando as bordas da sua pele e a fera voou para além dos limites do seu corpo. O fevino caiu destroçando os fageines, cujos disparos não fizeram nenhum efeito ao ricochetear em suas escamas amarelas. Os corpos leitosos foram rasgados pelas garras e lançados pelos ares, transformados em nada além de uma gosma espalhada no piso. Eu corri sobre ela aos tropeços e me escondi atrás de uma das paredes enquanto garras e projéteis voavam pelo salão, para esperar pelo único momento em que eu conseguisse alcançar o painel de controle.

Os restos dos fageines destroçados pelo chão começaram então a rastejar e se unir em uma massa leitosa e gosmenta no centro do salão, de onde pseudópodes começaram a se projetar e retrair. Era um mega-fageine; que se ergueu em uma torre e se jogou sobre o fevino, engolindo-o em um abraço de enzimas que queimou a fera como ácido. O fevino tentou escapar com as garras rasgando o interior do mega-fageine, mas mais e mais a criatura girava a fera e a desestabilizava no seu interior, tornando impossível escapar. As escamas amarelas começaram a ser corroídas, camada por camada, até que, em algum momento, o ácido alcançasse Kadi...

Vi uma arma dos soldados caída no chão e a peguei, tentando mirar com as mãos trêmulas no olho onde tinham convergido as consciências e as pupilas dos fageines, mas errei os dois primeiros disparos. No terceiro, finalmente, eu acertei o grande olho de raspão, desestabilizando o mega-fageine o suficiente para que o fevino conseguisse libertar uma de suas patas e abrir um imenso rasgo na superfície.

Os pseudópodes de um dos fageine que ainda não tinha sido atingido e englobado no mega-fageine se enrolaram ao meu corpo. A criatura arrancou a arma das minhas mãos, sem que eu pudesse fazer nada para impedir com a minha fraqueza humana. Eu tentei me desvencilhar e atingir o inimigo, mas então um som explodiu em bomba atômica nos meus ouvidos.

DOR.

A visão sumiu dos meus olhos e o chão faltou dos meus pés, enquanto um grito calado tentava sair da minha garganta e falhava. Arfei como um peixe fora d'água, sufocando no vazio, enquanto minha essência era mergulhada em dor... Dor... E dor... Pulsando, batendo, latejando...

Me matem... Eu estava falando em voz alta? Já não sabia mais.

Qual era a diferença entre o lado de dentro e o de fora, afinal?

Vermelho... Essa deveria ser a diferença. Mas ele estava em todo lugar.

Desabei no meu sangue, perfurada por um projétil que atravessou minhas costas e expôs meu interior para um mundo que nunca deveria ver. O vermelho se acumulava, me lembrando do rio em que nadei no Distrito de Sangue, um aviso que agora eu vivia. Talvez eu pudesse não morrer drenada, mas, dependendo do que tinha sido atingido, eu poderia não voltar quando o escuro enfim me envolvesse.

Tudo tinha se tornado um borrão turvo e confuso... E jurei ver os fageines se dissolverem quando seus corpos tocaram meu sangue... O que...

Senti mãos quentes no meu corpo, humanas, e ouvi uma voz distante sussurrando palavras indecifráveis ao meu ouvido, tentando me puxar de volta para a superfície quando eu nem conseguia entendê-lo...

Naquele momento vultos dourados dominaram o ambiente em um tsunami de ouro e eu senti o toque gélido de um abraço metálico me envolvendo. Meu corpo foi lentamente alçado do chão e, por mais que eu tentasse me manter acordada, acabei mergulhando na escuridão.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsOnde as histórias ganham vida. Descobre agora