Capítulo 20. Endorfina

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Não consegui não pensar sobre o que ela tinha me contado... Pelo visto eu não era o único que tinha sofrido perdas; e, naquele momento, "Donecea" soara distante demais, quando estávamos tão próximos... Tão mais próximos do que eu deveria me permitir... Droga. Eu tinha me afastado da humanidade por um motivo; mas agora aquilo estava começando a parecer uma fraqueza.

Ficamos em silêncio até que o pôr do sol de tornasse noite, porque o desaparecer da luz não era um espetáculo que podia ser interrompido. Os olhos dela afogados nas estrelas eram a única coisa que eu aceitava desviar os meus para encarar, porque a sua curiosidade era um espetáculo a parte que eu não podia perder. Eu ainda não sabia bem o que ela planejava fazer quando chegasse ao núcleo, mas tinha visto um lado seu que não deve ter sido fácil mostrar.

– O pior que se pode fazer é tomar as coisas como garantidas... – Quebrei o silêncio baixinho, pensando em tudo que antes achei que teria para sempre e que já não tinha mais. – Algumas coisas... Escorregam muito fácil pelos dedos...

Tomei um punhado daquele pó brilhante que se acumulava nas minhas roupas e o assisti sumir pelo vento sem que eu pudesse segurá-lo. Quantas coisas eu tinha perdido assim? Já tinha cansado de contar.

– Seu pai? – Ela sussurrou. – Ele deve ter sido um grande homem...

– O maior que podia...

– Foi ele que o mostrou esse universo além da Terra? – Ela perguntou e eu confirmei com a cabeça, revelando um pouco do meu passado:

Quando eu era criança e descobri que meu pai negociava com alienígenas, passei meses pedindo para que ele me levasse para conhecer um. Eu deveria estar aterrorizado... Mas era jovem demais para ter medo.

– 10 anos é novo demais para sair da atmosfera! – Me lembro de minha mãe reclamando. – E com aquelas feras com que você negocia... É perigoso demais!

– Esse cliente é diferente. – Meu pai retrucou. – Ele se importa com algo além de nos esmagar... Já é mais do que podemos dizer pela maioria dos humanos...

– Está fazendo amizade com alienígenas agora? – Ela era tão preocupada... Mas talvez eu devesse tê-la ouvido.

– Amizades fazem bem aos negócios.

Naquele dia eu pisei na nave dele pela primeira vez... As portas abertas foram como se o universo inteiro estivesse se abrindo para mim; e, quando a Hasta perfurou o espaço tão afiada quanto uma lança, eu acreditei que fosse possível desbravá-lo sem que o preço fosse imensurável. Ela era bem diferente de hoje... Mais limpa, mais brilhante, e algumas paredes ficavam em lugares diferentes, ainda que eu tenha tentado reconstrui-la tantas vezes à imagem da perfeição que ele criou. Ela era a nave com que eu conquistaria o universo... Pena que mudou tanto.

Meu pai decolou para além dos limites da Terra e, enquanto eu me perdia na vastidão atrás da janela, ele abriu as portas para uma criatura do espaço. Eu me escondi atrás da sua perna como se ele fosse uma muralha imbatível... Para mim, meu pai não era apenas um homem tentando construir sua vida aos tropeços, mas o solo em que minha realidade se sustentava; era onde eu mergulhava as minhas raízes para minha cabeça despontar em busca do sol; era meu porto seguro para retornar, a solução de qualquer problema e a proteção para qualquer ameaça... Com ele, não havia morte para me preocupar ou sonho que não pudesse se realizar... E, quando eu me escondi atrás da sua perna no momento em que o alienígena emergiu da escuridão, eu tive certeza de que tudo ficaria bem para sempre.

A criatura se decifrou abaixo da luz fraca de uma lâmpada, seus três olhos nos observando com a voracidade cruel de feras famintas. Seus ossos despontavam abaixo de uma pele avermelhada como sangue, o corpo gigantesco se curvava para caber no espaço apertado e seus dentes eram tão afiados que me lembro de achar terem sido lapidados, porque nada que eu jamais tinha visto na Terra parecia tão destrutivo, além daquilo criado com o objetivo de destruição.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsOnde as histórias ganham vida. Descobre agora