Capítulo 10. Toxicologia

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Era estranho ver que eu não estava sozinho. Era estranho não mais falar com as paredes e esperar seu eco como a única resposta, quando, por tanto tempo, essas tinham sido as minhas melhores conversas.

Meu mundo tinha sido invadido, a fechadura do baú de meus segredos testada e a minha solidão questionada. Talvez eu não devesse tê-la abraçado tanto pelos anos, mas ela me protegia de muitas dores; principalmente quando eu enfim chegasse aonde queria. As decisões já tinham sido tomadas, as peças da máquina do meu destino já estavam em suas posições, e eu só precisava de uma última para ligá-la. Quando eu chegasse lá, tudo que me restaria era esperar que escolher meu futuro não me machucasse tanto quanto meu passado; mas lá, provavelmente, já estaria tarde demais para voltar atrás.

Minha solidão era minha melhor proteção.

Então eu não podia chamar a invasora de Doxy.

Talvez eu devesse odiá-la... O que seria fácil se eu imaginasse que ela pensava de mim o mesmo que eu pensava de mim mesmo, – não havia muito além para se pensar, afinal – mas eu tentaria não ser rancoroso.

Passamos os três noxdiems seguintes viajando para o núcleo, pelos 7 círculos concêntricos de Ítopis, cujo número diminuía conforme nos aproximávamos do centro de tudo. De vez em quando eu me vi pulando de susto quando via Donecea pelos corredores. Era quase como se, se eu esperasse o suficiente, ela desapareceria da nave como café abandonado em um copo para evaporar... Porque a promessa de estar era a mais difícil de se cumprir.

Mas ela estava sempre ali. Porque não tinha como ir para outro lugar.

Uma vez minha atenção foi capturada pelas costas de Donecea, hipnotizada com as estrelas além da janela. Ela parecia um viajante que usa as constelações para navegar entre mares e planetas, estudando os caminhos para não cair em tempestades inesperadas. Meus passos me levaram silenciosos para ela e, quando eu estava próximo, perguntei:

– O que tanto olha?

Donecea pulou de susto com um gritinho e eu não consegui conter minha risada. Ela me encarou com a alma exposta nos olhos.

– Eu estava... – Ela gaguejou. – Apenas...

– Se perdendo nas constelações?

Seus olhos fugiram de mim, provavelmente porque eu estava certo; e porque ser vista não estava nos seus planos.

– Eu estava me distraindo com os desenhos... – Confessou. – Mas não conheço seus nomes. – Seu rosto se voltou para a janela e eu me perdi na curva de seu pescoço iluminada pelo brilho pálido que vinha do lado de fora. Meus olhos deslizaram pela textura de sua pele, pela delicadeza das curvas que levavam à mandíbula e por sua expressão encantada com a luz esporádica no vazio.

Pisquei, tentando não me perder como ela naquelas coisas belas que os olhos têm dificuldade de fugir.

– Aquela é a lâmina da justiça... – Apontei para um conjunto de estrelas na janela e tracei as linhas com meu dedo para formar o desenho de uma espada que apontava para o núcleo da galáxia. – A revolução diz que ela aponta para o núcleo porque, se quiserem justiça, é lá onde devem levar a luta.

Ela voltou um olhar intrigado para mim.

– Pelo visto nós os encontraremos lá então... – Talvez antes. – Conhece alguma outra constelação?

– Muitas... Quase todas... – Sorri. – Está vendo aquela? É um pedaço do coração de Akhoslos, um grande guerreiro antigo. As lendas dizem que, nos primórdios do Império, houve a guerra mais cruel que essa galáxia já viu e, se nada fosse feito, a extinção de todos seria certa. Então Akhoslos partiu seu coração e espalhou as partes pelas periferias da galáxia, para proteger a tudo que estivesse dentro dos seus limites...

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now