Capítulo 44. Solidão

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Na noite do noxdiem seguinte eu procurei por Kadi em seu quarto na rocha, porque ele tinha desaparecido durante todo o dia, mas ele não estava lá. Será que ele estava fugindo de mim? Me evitando, depois que tentei destruir aqueles que o levariam para onde tanto desejava ir? Ele tinha sacrificado tanto de si por aquela causa; e agora tanta dor escorria dos seus olhos ao pensar sobre o que tinha feito por ela... Eu não queria machucá-lo ainda mais, mesmo não concordando com o que o metriona estava fazendo.

Procurei por Kadi na Hasta, escondida no estacionamento de Venerna. Empurrei a porta devagar, para a escuridão pétrea do ambiente, mas Kadi não estava ali. Talvez ele estivesse no painel, mas, antes que eu pudesse subir, vi que a gaveta antes trancada ao lado da sua cama estava aberta. Fui atraída pelo mistério. Antes eu só quisera saber se era ali onde ele escondia as suas fortunas; mas agora eu queria entendê-lo, descobrir suas verdades escondidas, conhecer as maldições nas gavetas que mantinha trancadas... E, naquela, ele guardava uma pistola.

Kadi podia ter um arsenal espalhado por cada centímetro daquela nave, mas aquela arma trancada ao lado da sua cama era diferente... Quantas vezes ele tinha olhado para ela e cogitado usá-la? Quantas vezes ele tinha destrancado e trancado aquela gaveta para manter a escuridão fora do alcance? E por quanto tempo ele a tinha mantido longe, apenas para encará-la de novo naquela noite? Subi para a área do painel e estudei o ambiente escuro, meus passos me levando para um vazio que agora parecia tão estranhamente familiar. Kadi estava dormindo na sua cadeira, a chave que abrira aquela gaveta pendendo perigosamente dos seus dedos e o rosto pacífico, agora que não sentia dor; tranquilo, agora que não sentia medo; sereno, sonhando com dias perfeitos em algum paraíso que eu não fora convidada...

Silenciosamente caminhei até a cadeira do copiloto e me sentei com a esperança de que ela o acordasse por mim, mas ela não fez nenhum barulho.

Kadi a tinha consertado... Agora que havia alguém para usá-la.

Mas, mesmo com o silêncio, suas pálpebras se levantaram, pesadas como se acordasse pela primeira vez depois de tantas vidas perdidas. Seus olhos caíram em mim e, enquanto nos observamos no escuro calado, rodeados pelas rochas negras por trás da janela frontal da nave, as palavras cambalearam para fora da minha boca:

– Por que está segurando a chave? – E não a arma...

Ele brincou com ela entre os dedos por um instante e então eu prendi a respiração, como se a chave pudesse disparar sozinha.

– Porque ela não parece perigosa... – Ele sussurrou. – Ela parece uma... Oportunidade; como se escondendo a liberdade atrás de alguma porta...

– Mas não é isso que ela guarda, não é? – Ele não respondeu. – Eu vi a sua arma, Kadi... Por que você a mantém do lado da cama?

Ele retesou os músculos da mandíbula.

– Porque meu pior inimigo está perto demais... E eu só quero me livrar dele... – Algo me dizia que ele não estava se referindo ao fevino.

– O que... – Eu deveria saber o que dizer, mas, agora que encarava o vazio nos olhos dele, parecia que eu tinha me esquecido tudo. – O que você está sentindo?

– Eu não sei... – Kadi engoliu em seco. – Às vezes tudo que eu quero é pular da borda do precipício... Por que sei que nada vai me segurar; e que o chão vai doer assim como o mundo inteiro doeu... – A angústia nas suas palavras me feriu como se fosse minha. – Isso pelo menos seria familiar... Como casa.

Pisquei, para não deixar caírem as lágrimas acumuladas nos meus olhos.

– Você está pensando em... – Eu tinha tanto medo da resposta que quase não conseguir terminar de perguntá-la. – Desistir?

– Ainda não... Não antes que eu esteja a meio caminho do inferno.

E lá estava aquela palavra que ele às vezes usava, a voz com um amargor que despertou calafrios na minha coluna.

– O que é esse "inferno" exatamente?

– Um lugar muito, muito ruim...

– Achei que você estivesse indo para casa.

Ele abriu um sorriso que não alcançou os olhos.

– É o mais perto de uma casa que eu mereço.

Me inclinei na direção dele e tomei suas mãos nas minhas com cuidado, como se elas fossem se desfazer em pó entre meus dedos a qualquer momento.

– Você não é o monstro que acha que é, Kadi... – Sussurrei. Ele não deveria precisar de alguém que o ajudasse a entender seu valor, e eu não deveria tomar isso como missão... Mas como eu podia negar ajudá-lo quando ele precisava de mim? Quando ele precisava de alguém? – Você não está sozinho, Kadi. Não mais.

– Por tanto tempo eu achei que solidão fosse a solução... – Ele balançou a cabeça para os lados. – Porque sozinho eu não tinha que me preocupar em perder ninguém... Nem a mim mesmo, já que ninguém sentiria falta... – Ele engoliu em seco. Eu queria lembrá-lo de que não precisava ir embora, de que não precisava se condenar a solidão caso quisesse não estar só... Mas eu apenas me mantive calada. – É como se eu pudesse gritar e, por mais que eu destruísse a minha garganta, ninguém me ouviria... Como se eu nunca tivesse gritado...

– Eu estou aqui... Para ouvir desde os seus gritos até os seus mais baixos sussurros... – Sua expiração nos aqueceu, enquanto eu tentava manter de pé aquela ponte entre nós onde ele podia se segurar quando estivesse perto desabar. – Tudo que peço é que esteja aqui por mim também...

– Eu estou, Doxy... Mas não existe "para sempre" para seres como nós. – Me doía saber o quanto aquilo era verdade. Eu quase conseguia captar seus pensamentos, se remoendo dentro das suas cicatrizes, drenadas pelo tempo de sua capacidade de se recuperar. – E às vezes nem "tempo suficiente".

Eu queria perguntá-lo se era justa a falta que eu sentiria quando ele se fosse, mas, quando encarava seus olhos, eu via alguém que poderia nunca me abandonar; alguém que, se não desistisse agora, nunca desistiria. Será que ele cruzaria essa linha para estar ao meu lado? Será que eu valeria a pena? Ele suspirou, suas muralhas ainda lá, erguidas, impenetráveis... Mas, por mais que eu quisesse que ele abrisse suas portas para mim, já fiquei satisfeita por saber que ele não estava ruindo atrás delas. Kadi me encarou e então sussurrou, a voz me acariciando, doce como caramelo derretido e verdadeira como as pessoas não costumavam ser:

– Obrigado, Doxy.

Plantei na sua face um beijo delicado como o pouso de uma borboleta e me encolhi na cadeira, deixando-o sozinho naquela ponte com seus pensamentos. Eu mantive meus olhos abertos como faróis, gritando para os navios perdidos na sua tempestade que eu estava do outro lado se ele quisesse cruzar a travessia; que haveria um porto para atracar nesse universo de oceanos sem fim caso ele se cansasse de enfrentar sozinho as ondas... E ali eu passei a noite inteira, incapaz de dormir.

Quando não havia dúvidas de que os olhos dele vagavam por sonhos atrás das pálpebras fechadas, eu tomei a chave dos seus dedos e tranquei aquela gaveta com os perigos que ele tinha deixado escapar. E, quando voltei para a cadeira do copiloto – a minha cadeira – eu enfim me deixei adormecer. 

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