Capítulo 4. Emergência

27 1 0
                                    

Ela abriu a bolsa iátrica e praticamente mergulhou nela. Pelo visto ela queria mesmo sair daqui, ao ponto de confiar em mim. Eu sempre tinha visto iátricos como peças de um hospital colocadas ali antes mesmo das pilastras e consistentes como se sempre fossem estar ali. Nunca imaginei que um deles ia querer fugir... Talvez, no fundo, todos quisessem.

– Eu só tenho um bisturi... – Ela ergueu a lâmina, que reluziu abaixo da luz da garagem da mesma forma que seus olhos, como se fossem feitos do mesmo material; e como se fizessem com homens a mesma coisa.

– Deve dar para o gasto.

Escolhi uma ambulância – uma vítima – e me espremi entre ela e o chão, enquanto a iátrica se abaixava ao meu lado para ver o que eu estava fazendo, assustadoramente curiosa. Ela parecia ser o tipo que não desistia até que soubesse de tudo... Mas nem tudo ela ia saber.

Procurei o painel da nave e conectei o fio que eu tinha implantado em meu antebraço – meu aprimoramento – nos controles do veículo e, como se conversasse com a alma da máquina, a mandei que abrisse as portas.

– Pronto. – Me levantei.

A iátrica me encarou como se eu estivesse errado. Mas então eu abri a porta da ambulância, como um cavalheiro faria, e ela abriu um sorriso como aquelas joias que homens se colocavam em problemas para ter. Mas ele não durou tanto, porque a seriedade da obrigação logo tomou seu rosto.

– Agora precisamos destrancar a garagem. – Ela disse.

– E precisamos de uma chave para isso também?

– Não. – Ela encarou o portão distante, que nos separava do infinito além, onde se escondia tanta liberdade que as vezes eu nem sabia o que fazer com ela. – Para destrancar a porta é necessário o sangue de dois indivíduos da mesma espécie...

E, quando seus olhos voltaram para mim, eu vi nela algo que não tinha conseguido decifrar até agora, algo familiar que não se espera encontrar em um desconhecido, porque nunca se procura. Talvez ela tivesse passado meses – ou anos – naquele lugar, procurando por uma saída que estava ao alcance dos dedos, mas que fosse impossível de ter. E, agora que eu estava ali, uma boia salva-vidas furada, ela não podia se deixar perder um minuto sequer.

– Eles decidiram isso para que, caso alguém quisesse fugir, que limpasse o hospital das espécies que não estavam determinadas a trabalhar... – Ela explicou. – E então fizeram promessas para aqueles que ficaram...

Um silêncio doloroso dominou a garagem, que, em algum momento, eu tomei a responsabilidade de quebrar:

– Mas será que nós dois somos humanos mesmo? – Ela ergueu uma sobrancelha. – Por que, olhando bem, você parece meio alienígena...

Ela riu e me deu um soco no ombro.

– Vou levar isso como um elogio.

A iátrica caminhou para uma abertura ao lado da porta da garagem, tomou o bisturi e o posicionou na ponta de um dos dedos, rompendo a barreira da pele para derramar nela uma gota do seu sangue. Ela me entregou a lâmina e assistiu meu sangue pingar na bandeja como se fosse ouro líquido, misturando-se ao seu e abrindo as primeiras portas da garagem.

Nos viramos para voltar à ambulância, uma cortina de névoa branca começou a escorrer dos túneis de ventilação próximos do teto, se acumulando em um tapete pálido ao chão. Nos encaramos.

Eles sabiam que estávamos aqui.

Corremos para a ambulância, enquanto o nível de neblina subia rapidamente, nos engolindo dos pés à cabeça com as correntezas de um rio leitoso. Eu estava na frente da iátrica, talvez porque minhas passadas eram maiores, ou talvez porque eu já estivesse acostumado a correr de tudo, mas então comecei a ficar lento, como se pesos tivessem sido amarrados nos meus tornozelos. Quando olhei para baixo, a neblina já estava na altura da minha cintura e meus pés pareciam tão distantes que cada comando demorava dez vezes mais para chegar neles.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsDonde viven las historias. Descúbrelo ahora