Capítulo 27. Memórias

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Eu não queria ser uma peça naquele jogo, emprestada e sugada até que já não existisse mais nada em mim para oferecer... Eu queria fazer algo tão excepcional quanto minha mãe, para nunca mais ver as dores alheias que me lembravam das minhas... E, para isso, eu só precisava chegar no núcleo.

Fomos guiados pelo metriona até uma sala de paredes e piso brancos, pacífica como se não houvesse nada dentro dela que pudesse me perturbar. No centro do ambiente se erguia um cubo cheio de um líquido turvo, onde boiava um órgão azulado e rugoso, coberto de fios que convergiam em uma agulha pendurada fora da caixa. Me aproximei daquilo que um dia estivera no corpo de uma criatura e logo percebi que aquele órgão definitivamente nunca pertencera a um humano.

– Esse é o cérebro do assassino de sua mãe. – O metriona revelou, tirando o chão dos meus pés. Como aquela esponjinha azul poderia ter sido responsável por tanta dor? Como algo tão pequeno e frágil poderia ter desmoronado meu mundo? – Ali estão as respostas para as suas perguntas, Donecea. Quer conhecê-las?

Confirmei com a cabeça. O metriona guiou a agulha pendurada até mim e eu retirei meus cabelos do seu caminho com os dedos trêmulos. A agulha perfurou minha nuca, rasgando a pele e as fibras dos músculos até alcançar os nervos, com uma pontada ardente que se espalhou pela minha mente. Fechei os olhos e deixei a escuridão atrás das minhas pálpebras ser tomada pelas memórias daquele cérebro preservado, quando seus impulsos elétricos fluíram para dentro da minha mente.

A pergunta explodiu na minha mente... Quem... Quem matou minha mãe... E minha necessidade de sabe canalizou tudo até que imagens turvas se coloriram nos meus olhos, materializando seres opulentes que apenas podiam ser Áulicos. Eles conversavam sobre algo que eu não conseguia entender... Até que ouvi o nome de Gaxy. Um dos Áulicos tinha a pele de um profundo tom azul e um ferrão bulboso despontava das suas costas... Era o mesmo pione que Kadi tinha "envenenado" no Distrito de Destruição... Ali, no passado, falando sobre Gaxy com tantos outros como se o destino dela fosse seu para decidir.

Me concentrei na tentativa de formar frases coerentes com as palavras que o assassino não conhecia, até que consegui ouvir um dos Áulicos falar:

– Os humanos que ela vende para os rebeldes os estão fortalecendo...

Fortalecendo? Então minha mãe estava ajudando a rebelião?

– Acha que é isso que ela quer?

– Não importa se é de propósito ou não. Ela precisa ser parada.

Um dos Áulicos soltou um som que poderia ter sido uma risada, ressoando na minha mente com a etereidade de um fageine.

– Ela é uma humana. Então isso não vai ser difícil...

Pisquei para fora da ilusão, ainda que minha mente se conectasse a ela.

– Por que eles... – Titubeei para o metriona, mas não consegui terminar.

– Os Áulicos já estavam trabalhando na criação da própria cura. E eles não precisavam da ajuda de uma humana que os estivessem traindo. – Assim, todo o trabalho dela tinha se tornado nada... Porque nossa importância era relativa. – E você, com a cura e os genes de Gaxy, se envolvendo com um dos fornecedores de energia da revolução... – O principal fornecedor, na verdade. – Não foi à toa que eles tentaram jogá-la no sol... Eles não iam querer outra humana no Aulicado.

– Eu nunca quis me tornar uma...

– Não era o que parecia. – O metriona revelou. – Nem era para a Terra ter sido acrescentada ao Império, quanto mais existir uma humana no Aulicado... O Artefato que se envia para os mundos de Ítopis não foi mandado pelos Áulicos para o seu mundo... Mas a revolução o desviou. – Os humanos tinham sido apenas um ato de rebeldia... Uma posição roubada, porque nunca a teríamos merecido por nossos esforço; talvez por nunca serem suficientes; talvez por nunca serem vistos. – Ainda hoje me lembro da relutância de Bleine em apontar um humano para o Aulicado... Até Gaxy... Mas, pelo visto, aquela não fora uma decisão permanente.

Por todo aquele tempo eu tinha achado que minha mãe fora morta por aqueles que não queriam ser curados; mas, na realidade, ela tinha sido destruída por aqueles que queriam o mesmo que ela... O bem do Império. Ou talvez poder. E eu, tentando seguir seus passos descritos nas linhas de cartas, rumava para o mesmo fim... Mas como ele tinha sido? Como sua vida inevitavelmente fora ceifada?

As imagens então se filtraram em uma resposta que eu não sabia se estava preparada para conhecer, me mostrando, por trás dos olhos do assassino, um projétil invadir a cabeça da minha mãe... A explosão do disparo me ensurdeceu e seu corpo desabou para um abismo que senti me puxar para dentro também...

Mas então arranquei a agulha do pescoço.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now