Capítulo 46. Digestão

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Segui Korrok para uma das salas nas profundezas da cidade subterrânea, por onde os cartuchos cheios de energia que eu fornecia para a revolução alimentavam Venerna.

– Preciso que você os desconecte. – Korrok disse. – Só seres autorizados podem fazer isso, mas eu não consigo achá-los.

Eu não podia culpá-los. Quando ouvi os urros e disparos explodindo na cidade, eu também quis correr para o mais longe possível. Mas eu não podia simplesmente virar as costas para aqueles que nunca as viraram para mim.

Implorei para meus dedos que parassem de tremer e então conectei o cabo do meu aprimoramento ao painel que controlava o fluxo de energia.

Se o Arkadi de anos atrás pudesse ver o risco eu estava correndo agora para que aquela causa pudesse ter mais alguns suspiros, ele teria pensado que, em algum ponto do caminho, eu enlouqueci. Ele não entenderia como viver poderia ter caído tanto nas minhas prioridades e me imploraria para fugir dali o mais rápido possível, mas eu não podia abandonar aquela causa que, abaixo dos meus pés, mantivera minha cabeça acima da superfície. Agora eu precisava fazer o mesmo por Venerna.

Ultrapassei as barreiras que impediam o acesso aos controles e ativei a permissão para que os cartuchos pudessem ser desconectados. Korrok e eu imediatamente as arrancamos de seus postos e jogamos em um túnel na parede para as naves de transporte o mais rápido que conseguíamos, até o cansaço ser audível nas nossas respirações. A cada capsula removida os sons mecânicos de Venerna diminuíam mais e mais, tornando os gritos acima mais audíveis e as minhas mãos mais trêmulas.

Éramos como marinheiros, jogando água para fora de um barco que afundava no meio de uma tempestade inescapável... Que as profundezas tivessem piedade das nossas almas.

– Você imaginou que isso iria acontecer? – Murmurei.

– Eu seria estúpido se não... Mas isso é como a morte, Phaga: sabemos que virá, mas nunca a esperamos.

Eu me perguntava o quão perto eu podia estar da minha... Mas, antes que eu pudesse chegar a alguma resposta, Korrok lançou um dos cartuchos no túnel com mais força do que as outras, tão atormentado com toda aquela situação quanto eu.

– Cuidado com elas. – Avisei. – Você não vai querer quebrar alguma delas.

Korrok me observou por um instante e confirmou em silêncio.

– Quantas você acha que vamos precisar, Phaga?

– Depende de quanto tempo a revolução ainda vai durar.

O vorrampe se empertigou, sua imponente estatura vermelha alimentada por um impulso de determinação que despertou calafrios na minha coluna.

– Nós vamos acabar logo com isso. – Ele rosnou e pousou sua garra sobre o meu ombro. – Estamos chegando ao fim de tudo, amigo... E então finalmente teremos justiça. Pela vitória; ou pela morte.

Tinha eu feito tanto para que qualquer final que me encontrasse fosse justo?

Não... Um universo que se importasse com justiça não me deixaria terminar aquela guerra fora de uma cova.

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Corremos pelos corredores escuros e pelas escadarias na direção do estacionamento, onde estavam as nossas naves de fuga. A única luz no nosso caminho era aquela dos peixes de Venerna, suficiente apenas para que eu conseguisse decifrar a silhueta de Korrok guiando o caminho pela escuridão. Minhas pernas tentavam acompanhar as suas passadas, mas então eu pisei em uma pedra solta que estalou abaixo dos meus pés.

Quando a luz da lanterna de um dos fageines pousou no meu rosto, minha visão foi completamente ofuscada pela morte que me encarava de frente... Mas então algo caiu do meu rosto e tudo ficou mais fácil de ver. Senti meus olhos se expandindo até que não houvesse uma única silhueta que eu não conseguisse decifrar, eficientes demais para realmente serem os meus, porque eles estavam no chão e os do fevino no meu rosto.

Meu corpo desviou do primeiro disparo, mas eu não tinha certeza se tinha sido pelo meu comando. Seu segundo disparo, porém, atingiu o meu braço e arrancou minha mão em uma explosão de sangue. Mas a dor nem me atingiu, porque, em um piscar de olhos, as garras do fevino substituíram o espaço vazio e voaram sobre o fageine.

Arranquei um pedaço do corpo leitoso da criatura e fiz sua lanterna voar para longe. O fageine soltou um grito estridente e disparou contra mim de novo, mas, mesmo com os reflexos do fevino, o inimigo conseguiu atingir o meu pé, substituído pelo membro muito mais ágil da fera abaixo da minha pele. Avancei na direção à criatura e, quando voei minhas garras para o seu olho, o fageine soltou um último disparo.

O projétil brilhou na arma e atingiu meu abdome, se alojando nas profundezas dele. Minhas garras voaram na arma do fageine e a lançaram para longe também, quando um ardor emergiu no centro do meu âmago. Minha mão humana pousou na ferida para segurar as minhas entranhas destroçadas... Aqueles órgãos humanos que o fevino não tinha para substituir.

Minha visão ficou turva, as pernas fraquejaram e, quando meu corpo desabou sobre a poça de sangue enquanto o fageine se aproximava, eu soube que estava ferrado.

Tentei me arrastar para longe pelo chão com as garras se cravando na rocha, mas eu não forças para escapar.

Então ali estava a minha morte...

Não havia nenhum soldados da rebelião ali para me ajudar, a força do fevino tinha escorrido pelo chão com o meu sangue, Korrok tinha me deixado para trás, agora que já não precisava mais de mim, e Doxy tinha se despedido com o seu último olhar, talvez rumando para a morte, talvez fazendo as pazes com a minha...

Eu estava sozinho.

Verdadeiramente e completamente sozinho.

Eu morreria como um parasita, pintando Venerna com o meu rastro de sangue. Meus restos ficariam ali, eternizados pelo chão até comporem uma das camadas daquela encosta, para nunca mais serem vistos de novo. Eu voltaria a ser nada, assim como antes tinha sido; assim como nunca tinha deixado de ser.

Senti o corpo do fageine envolver o meu pé, a dor tão excruciante que achei que o inferno estivesse me engolindo por inteiro, sem nem me deixar passar pelo purgatório. Tentei me impulsionar mais para a frente, mas, quando o sangue me faltou na cabeça, tudo escureceu e eu desmaiei na eternidade.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now