Capítulo 14. Nó de Sutura

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Parte 3
Adrenalina

A água gelada do chuveiro escorria pelos meus cabelos e acumulava o vermelho aos meus pés. Assisti o sangue sibilar em espiral até desaparecer pelo ralo, como as estrelas que estavam sempre girando em queda livre para o núcleo da galáxia, mas velozes demais para sucumbir. Será que, quando chegasse lá, eu seria engolida assim também? Não queria saber a resposta.

Saí do banho, vesti as roupas de Arkadi e, enquanto penteava meus cabelos, me deixei sonhar com o fim de tudo, quando eu fizesse de algum mundo minha casa e a solidão não conseguisse mais me encontrar. Uma vida normal que parecesse suficiente valia a pena o esforço...

Me sentei na cama e apliquei no tornozelo esquerdo um medicamento que o faria se recuperar em 12 horas e apagaria a cicatriz. E ainda me perguntavam por que eu tinha decidido me tornar iátrica.

Espreitei por entre as persianas a visão além da janela, agora que tínhamos nos afastado do Distrito de Sangue e nos aproximávamos do seu poro - um daqueles que conectava os mundos de Ítopis. O aro brilhava como um eclipse, girando constantemente como se nos convidasse para entrar; mas também como se tentasse nos avisar que não o fizesse. Quando o atravessamos, fomos envolvidos pela escuridão do outro lado e, só alguns minutos depois, as estrelas voltaram a aparecer ao redor. Eu não chamaria isso de um bom sinal, se acreditasse em sinais.

Arkadi então passou por mim para pegar algo em seus armários e eu percebi que ele estava curvado, lento... Ferido.

- Deixe-me ver. - Pedi.

- Não precisa... Já usei meus curativos.

- Me desculpe duvidar, mas... - Me aproximei. - Não acho que deve ter feito um bom trabalho.

Ele bufou e se rendeu, sentando-se na cama. Arkadi ergueu a camisa e mostrou o pequeno curativo tentando segurar as margens do penhasco aberto no seu abdome. Sim, humanos eram previsíveis.

Limpei a pele com um tecido suave e, em algum momento, percebi que tinha prendido a respiração. Eu não focava assim em muito tempo. Tomei uma agulha de sutura e lentamente fechei seu corte, camada por camada, das profundezas à superfície, até que, perdida no trabalho, deixei escapar o murmúrio:

- Fizeram um estrago em você, Kadi...

Ele me fuzilou, seu olhar como o sol queimando minhas bochechas e seu rosto refém de um sorriso cúmplice.

- Kadi?

- Soa melhor. - Impliquei, dando de ombros. Eu não queria confessar que foi um deslize meu, um pedido, um corte aberto por onde ele podia puxar meus fios soltos... Então apenas provoquei: - Vou chamar você assim agora.

- Se esforçou tanto para descobrir meu nome... Que tal agora usá-lo?

- E você demorou tanto para contá-lo. Talvez seja porque, no fundo, sabe que ele não é tão bom assim... Kadi.

- É assim que vai tratar o primeiro humano que viu em tanto tempo?

- E, depois de tanto tempo, esse humano vai me obrigar a chamá-lo por esse nome tão... Peculiar?

- Falou a "Donecea". - Revirei os olhos. - Mas, mesmo se fosse "peculiar", não seria de alguém como você que eu receberia um novo... Donecea.

- Alguém com bom gosto? - Ele meneou com a cabeça.

- Phagas são fiéis ao seu mau gosto. E às suas péssimas decisões de vida.

- Não são só nomes ruins que temos em comum, então.

Ficamos em silêncio, enquanto eu me concentrava no trabalho. Quantas vezes estaríamos naquela situação? E será que haveria alguma pior, em que minhas linhas não fossem suficientes para juntar suas metades e ele se desenovelasse nas minhas mãos? Será que haveria momentos em que minhas palavras não fossem mais suficientes para distraí-lo da sua dor ou que haveria um dia em que eu não pudesse salvá-lo? Um dia em que eu não pudesse salvar mais ninguém... Nem a mim...

- Tudo que fizemos... - Fugi da minha mente. - Atacamos um hospital interestelar, enganamos um bando de coletores, iniciamos uma guerra no Distrito de Sangue... Estamos passando uma péssima imagem do que é ser "humano".

- Como se eles já não pensassem assim de nós... - Ele bufou. - E outros humanos construíram imagens piores. - Ergui uma sobrancelha.

- Então as desumanidades do passado justificam as futuras?

- Não. - Ele ergueu as mãos em rendição. - Só queria dizer que, caso existisse uma lista dos piores humanos que já viveram, nós estaríamos longe do topo. - Talvez fosse verdade, mas eu não queria trazer caos no universo; nem que fosse um medíocre. Ele viu aquilo nos meus olhos, então continuou: - Nós olhamos para esses mundos e vemos palácios, tecnologias, leis... Mas isso tudo ainda é uma selva. Onde precisamos ser desumanos para existir. - Era naquilo que ele acreditava quando queria se perdoar? - Ninguém culpa uma raposa que mata um coelho. Nos resta apenas escolher de que lado estamos.

- Mas e se eu não quisesse ser nenhum dos dois? E se eu quisesse ser... - Refleti. - Uma árvore? - Ele riu.

- Então você teria de ter nascido em um solo muito fértil... E se contentado com ele. - Mas até árvores cresciam sobre as outras para tomar o sol para si. - A natureza nunca teve piedade de nós. Onde aprenderíamos o que é isso?

Eu também estaria com raiva se não acreditasse que o Império pudesse voltar à uma glória que nunca o teria feito se sentir assim.

- Uns com os outros.

Quando os olhos de Arkadi - ou Kadi - caíram em mim, a severidade de sua expressão se suavizou. Foi como se toda a dor tivesse passado - aquela em seu corpo e aquela em sua mente - E eu, de alguma forma, era tudo que ele precisava.

- Então... - Pigarreei, tentando mudar de assunto e fugindo dos seus olhos. - Você ajudava muito na rebelião?

Ele riu do meu desconforto e me fez o favor de não comentar sobre.

- Indiretamente... Na verdade, eu estava ajudando mais a mim do que a eles. - Deu de ombros. - Eu só estava vendo o dinheiro, e não o que eles faziam com o que eu os vendia.

- Os cartuchos de energia das estrelas do Império?

Um crime... Como se ele já não tivesse suficientes. Kadi sorriu devagar.

- Esse é o problema de se envolver com pessoas inteligentes... Elas entendem demais, mesmo com pouca informação...

- Um elogio?

- Você não é difícil de elogiar. - Kadi murmurou. - Além do mais, meus cortes estão nas suas mãos. Eu não ia querer irritá-la.

- Essa é a vantagem de se envolver com pessoas inteligentes... Elas fazem boas escolhas. - Dei uma leve puxada no fio de sutura e apertei o último laço, fechando o corte. - Tudo pronto. Agora você tem um curativo de respeito, Kadi.

Ele revirou os olhos.

- Logo quando eu estava começando a tolerá-la.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now