Capítulo 43. Ruminação

20 1 0
                                    

Terceiro círculo do Império
Venerna

Doxy correu pelas escadarias torre acima, mas eu não podia deixá-la sozinha naquele estado e naquele universo de monstros. Avisei para Korrok que eu ia tomar a nave e a ofereci levá-la de volta para Venerna, o que Doxy aceitou com relutância e, assim que nos aproximamos do topo da encosta, ela murmurou:

– Eu preciso descer... Preciso respirar...

Estacionei a nave sobre a grama e Doxy tropeçou para o vento furioso que soprava no descampado nublado. Eu a segui para fora da nave, meus olhos tomados pela luz dos raios que explodiam no mar e meus ouvidos pelos trovões na tempestade que se formava. Será que era aquilo que estava acontecendo na mente dela também?

– Eu não sabia que era ela, Doxy... – Tentei. – Se realmente foi ela.

– Teria importado? – Ela parou e me enviou um olhar severo por sobre o ombro. – Se soubesse que era Gaxy, teria se impedido de apertar o gatilho?

– Não. – Confessei; e então ela voltou a andar para longe. Talvez, se eu soubesse que estava mirando em uma Áulica, eu tivesse vivido com menos culpa... – Mas, se eu soubesse que tinha sido ela, não teria escondido de você.

– Obrigada pela honestidade. – Ela não soou agradecida. – Mas isso não muda o fato de que você matou alguém!

– Você não estaria tão irritada se não existisse a possibilidade de ter sido ela! – Rosnei, apenas para atingi-la, e a dor nos seus olhos me fez instantaneamente me arrepender daquilo. – Eu não tive opção, Doxy... Ou eu entrava para a revolução, ou era devorado pelos coletores... Eu nunca teria feito aquilo se tivesse outra alternativa...

Não tinha existido um instante em que eu não me odiara pelas minhas ações; não passara um momento em que eu não me perguntara o que teria sido da minha vida se eu nunca tivesse apertado aquele gatilho... Talvez eu nem estivesse respirando mais; ou talvez estivesse muito longe dali, sem o peso de tomar uma vida na minha consciência...

Muitas vezes eu me vi sonhando que a minha vítima tinha sido um grande e terrível assassino, em uma tentativa de diminuir a sensação de que eu tinha cometido um erro... Mas, no fundo, eu sabia que tinha matado um inocente, uma engrenagem que precisava ser descartada para que aquela maquinaria que nos aprisionava continuasse funcionando. Às vezes eu me via pensando que estava só cumprindo com a minha função, mas aquilo nunca me ajudou a dormir melhor a noite. Ninguém tinha movido meu dedo ao redor do gatilho; aquela fora a minha escolha, meu erro, meu fardo para carregar...

Eu esperava que, quando partisse, tudo aquilo ficasse para trás, mas algo me dizia que não importava para onde fosse, eu jamais conseguiria escapar do que minha vida tinha se tornado: um eco daquele silêncio insilenciável, tatuado no meu cérebro em uma marca com o qual eu tentara aprender a viver, apenas para descobrir que não era vida o que eu estava fazendo.

– Eu sei que, para você, cada vida vale mais que tudo, mas às vezes vidas são o preço para se viver mais um dia nesse Império! – Gritei, tentando ser ouvido além dos trovões. – Me desculpe se você é tão perfeita ao ponto de...

– Eu matei um soldado no Distrito de Veneno!

Parei, abaixo da voz dela, do rugido dos trovões e do oceano de obsidiana chocando-se contra a encosta de pedra. Nuvens negras de tempestade acinzentavam o céu, relâmpagos brilhavam no horizonte onde mar e nuvens se misturavam e ventos furiosos varriam nossos cabelos. Era impossível de definir o que era mais caótico: a tempestade acima ou ela.

– Eu o matei com as minhas próprias mãos... – Ela confessou, encarando seus dedos como se eles fossem feitos de pura morte e dor. – Tentei curá-lo do controle da rebelião com o meu sangue, mas isso o matou... Porque é para isso que eu estou aqui...

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now