VII - A realidade é diferente

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Despertou e sentiu-se melhor.

Não sabia que tinha adormecido e, logo que abriu os olhos para uma vigília atónita, surpreendeu-se com o facto de que possivelmente estivera a dormir, estirado no chão daquela cela imunda. Protegera-se com a capa, não tocara diretamente no soalho húmido, mas não evitou uma careta pelo seu desleixo.

Julgava que estava a dominar o pesadelo e, nisto, descobriu-se relaxado e muito calmo face à sua situação precária. Sentou-se, recuperando a anterior posição que lhe permitia reduzir o espaço que ocupava. Aconchegou-se sob a pesada capa dos Jedi que o aquecia, protegia e que lhe conferia uma certa aura de respeitabilidade. Como um símbolo do seu estatuto, do que ele representava – que, em abono da verdade, nada impunha naquele lugar pouco hospitaleiro. Estava a ser tratado como um criminoso comum. E pior – estava a ser tratado imparcialmente, mas não agravava o seu ressentimento ao compreender que todos aqueles que ofendiam a ordem de Hkion seriam assim tratados.

Pigarreou ao sentir um gosto adocicado na garganta. Pensou primeiro no soro que teria entrado pela boca, em forma de moléculas minúsculas demais para ele as ter evitado, mas de seguida os olhos prenderam-se num conjunto de objetos que se encontravam do seu lado direito, um pequeno tabuleiro com uma malga e um copo moldados em argila. Passou os dedos pelo interior dos recipientes. Estavam molhados, mas vazios, o que queria dizer que o seu conteúdo havia sido consumido.

Franziu a testa, admirado, tentando recordar-se do momento em que comera ou bebera qualquer coisa e também não tinha memória desse facto, tal como não conseguia precisar o instante em que teria caído no sono que lhe retemperara as energias. Sentia-se outro homem, isso era notório.

O pesadelo já não o incomodava, a confusão já não o assaltava, uma espécie de tranquilidade morna envolvia-o como numa pátina aveludada e protetora. O soro tinha-se dissipado e os seus efeitos sumiram-se do seu organismo que estava limpo e saudável.

Levantou-se e fez uma segunda análise à cela, tentando perceber as diferenças que existiriam, comparando com o que entrevira na sua primeira análise. Tudo estava intocado, igual, à exceção – e o seu coração deu um salto – da porta que se encontrava aberta.

A estranheza não o fez demorar-se e passou pela abertura que o convidava a recuperar a sua liberdade. Não iria desdenhar de tal oferta, nem iria tentar, antes, averiguar o que se passava. Estava perante algumas dádivas imprevistas – comida, bebida, descanso através de um sono mais ou menos imposto, a ausência do soro que o drogava – no entanto desejava prosseguir e fazer as perguntas depois.

As suas pernas movimentaram-se com destreza e foi outra das surpresas, esperava sentir-se mais entorpecido e instável. Olhou em redor e a paisagem era relativamente igual àquela que ele fixara quando o levaram até à prisão. Acabava de sair de um complexo dissimulado atrás de um muro, próximo aos jardins do palácio que albergava os membros do governo do planeta. As construções eram em pedra e lembravam velhas ruínas de templos muito antigos.

Olhou com mais cuidado e reparou que não se via ninguém por perto. Ele estava sozinho naquele pedaço de mundo e por incrível que pudesse parecer não havia quem se importasse com a sua saída da cela, com as suas atitudes, com a simples evidência de que ele já não se encontrava sob a custódia das autoridades de Hkion. Estava livre. Outra dádiva imprevista.

Com passos cautelosos, redobrando a sua atenção, Luke contornou o muro e viu-se num recanto dos imensos jardins, onde existia relva debaixo das suas botas, mais à frente arbustos meticulosamente aparados e árvores de uma espécie rara, até bancos esculpidos em madeira. Fixou as copas das árvores e encontrou os pequenos animais encavalitados nos ramos.

O seu sorriso foi irónico. O lugar era bonito, mas havia um detalhe que estava a condicionar os seus poderes. Continuava sem poder contactar com a Força e recolher dela as informações invisíveis e essenciais que lhe permitiriam prever movimentações, que o ajudariam a entender, na sua real amplitude, o que estava a acontecer, alcançando as respostas a todos os mistérios.

E a culpa era dos animaizinhos que ocupavam as ramagens. Os Ysalamiri. Os lagartos arrancavam e mastigavam as folhas das árvores Olbio, uma espécie diferente e rara de flora que não existia em todos os locais da galáxia. Ele reparou que as árvores tinham sido plantadas meticulosamente naquele jardim, pelo que admitiu que teriam sido importadas. O clima não devia ser muito diferente de onde eram oriundas e fortificaram-se. Depois foi a vez da importação dos Ysalamiri e os lagartos seriam uma segurança dos governantes que daquele modo evitavam serem atacados por quem sabia usar a Força. Talvez um costume que teria vindo do tempo da Antiga República, para se defenderam da influência dos Jedi – e isso explicaria a relutância em quererem falar com ele – ou de tempos mais recuados, quando ocorrera o sangrento conflito entre os cavaleiros Jedi e senhores dos Sith.

E explicava também por que razão o tinham levado para ali, para que ele não tivesse acesso à Força, seria porventura a única cela que ficava próxima do sítio onde existiam os Ysalamiri.

Os lagartos exerciam a interferência na Força num perímetro restrito, cujo centro eram eles próprios. Bolhas de vibrações criadas pelos seus corpos esguios onde havia um vácuo energético. Portanto se ele se afastasse alguns metros-padrão, conseguiria recuperar a sua ligação à Força. Voltou a olhar em redor e voltou a comprovar que não estava ali ninguém. Era incomum, ele admitia-o.

Ao puxar pela aba da capa sentiu algo duro na palma da mão.

Não estivera ali antes. Tinha-se materializado. Ou, ideia mais insana, tinha recuperado a sensibilidade naquela mão. Era a mão direita, a mão artificial. Estaria a ter problemas com as ligações cibernéticas ao seu sistema nervoso central? Era a primeira vez que detetava uma anomalia semelhante.

As suas pernas recusaram-se a obedecer e ele experimentou um calafrio que o gelou. Ele queria andar, caminhar, abandonar o lugar que os Ysalamiri controlavam – ele não podia competir com os lagartos, perderia essa disputa por larga desvantagem, estava bem ciente dos efeitos provocados nas suas capacidades especialmente treinadas – podia fazê-lo e depois verificar o que tinha na mão, mas aconteceu que não era capaz de realizar duas tarefas mecânicas ao mesmo tempo. Andar e abrir a mão.

Tinha de escolher apenas uma.

Tinha de escolher entre voltar a ter a Força ou ver o que guardava.

Com uma culpa atroz a corroê-lo, ele levantou o braço e abriu os dedos.

Era um anel de ouro, pequeno, com um símbolo gravado numa área mais larga que formava um sinete. Aquele anel era a assinatura de alguém poderoso. Lembrou-se do nome que lhe deram. Bekbaal.

Ele não soubera do nome por causa de uma das suas reuniões infrutíferas com os funcionários burocráticos que trabalhavam para o governo corrupto de Hkion. Fora alguém que lho dissera, no meio do pesadelo. Num plano real, num plano físico, mas totalmente deturpado por um sonho horrível.

Escutou uma gargalhada na escuridão.

Luke ergueu os olhos para o céu que se tornara da cor da fuligem. Nuvens espessas engrossavam nas alturas, numa tempestade repentina que engolia a claridade diurna. Havia um eclipse. O jardim ensombrou-se e os olhos dos lagartos tornaram-se vermelhos e ameaçadores. Fixavam-no com voracidade. Ele usava a Força, os animais iriam alimentar-se da sua Força.

Arquejou delirante. A garganta sabia-lhe a ferro. A sangue.

O negrume abateu-se sobre ele, sentiu o seu peso nos ombros que estavam esmagados com aquela pressão inaudita. Era ele que se ria às gargalhadas. Era dele aquele riso tresloucado. E por se rir assim, arranhava a garganta que lhe doía e que tinha um sabor repulsivo.

Os seus olhos já não viam o céu do exterior, fixavam-se alucinados no teto irregular da cela, uma caverna maldita, um buraco fétido.

Na mão direita segurava o anel de Bekbaal que deveria utilizar no julgamento.

Continuava preso, continuava dentro do pesadelo.

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