68. Água e Vinho

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Amy continuava parada do lado de fora da sala encarando à mim e seu pai. Seus olhos cinzentos estavam cheios de dúvidas e questionamentos.
Engoli em seco, procurando uma resposta adequada para aquela situação. Uma resposta que não a levasse à beira de um colapso novamente.
— Princesa — disse Kai, calmamente. Ou pelo menos tentando aparentar calma — Vem aqui.
Ainda exitante, Amy adentrou o recinto e doeu no meu coração vê-la arrastar aquele suporte de oxigênio consigo. Era uma das coisas que a estavam mantendo viva durante todos aqueles anos. Ela mirou meu rosto com a mesma curiosidade de antes, mas não dirigiu a palavra à mim, apenas atravessou a sala e subiu na perna de Kai com certa dificuldade. Este que não a ajudou, deixando-a se esforçar por sua conta.
Eu estava prestes a ajudar, quando ela simplesmente subiu sozinha e um traço da satisfação cruzou seu rosto pálido e pequeno. Ela estava orgulhosa.
Kai ajeitou seus cabelos na altura do queixo e arrumou o arco prateado cuidadosamente, em seguida, sorriu para ela.
— Você sabe que eu não minto para você, não é? — disse de uma maneira quase gentil, embora não fosse forçado como os adultos fazem quando estão falando com crianças. Ele a tratava como uma igual.
— Você não me falou sobre a mamãe — murmurou, com seus olhos magoados vindo na minha direção  e voltando ao seu pai.
Meu coração estúpido e semi morto se acelerou com aquela simples atenção.
— Eu fui um idiota — ele prosseguiu — Achei que iria embora com a mamãe se contasse. Sabe que eu não vivo sem você, não é?
Ela assentiu sorrindo levemente, mas ainda dava para ver a mágoa em seu olhar.
— Eu posso ficar com os dois, não posso? — pediu, olhando sucessivamente de um para o outro.
Kai ergueu seus olhos azuis cinzentos para mim, esperando que eu desse uma resposta. Mas, como eu diria à ela que não conseguia conviver com seu pai depois de tudo o que ele me fez?
Ele pigarreou.
— Nós... — ele começou, voltando a fitá-la nos olhos —... sua mãe e eu somos como você e a vovó Soledad quando estão brigadas.
— Eu não gosto de brigar com a abuelita — sacudiu a cabeça com veemência.
— Eu também não gosto de brigar com a mamãe — esclareceu, ainda calmo — Mas nós dois somos assim um com o outro.
— Que bobagem — ela revirou os olhos. E ficou igualzinha à ele fazendo aquilo. Foi estranhamente adorável.
— Eu sei, somos bobos por isso — continuou — Nós brigamos por coisas grandes e pequenas e também brigamos por você e sua irmã. Eu quero ficar com você e sua mãe também. Porém, eu também quero poder visitar sua irmã de vez em quando. Mas, nós somos tão bobos que não conseguimos dividir vocês duas entre nós.
Ela ponderou aquilo por um segundo, pensando.
— Dividir é importante — ela disse à ele, e não duvidava  que aquilo fosse uma das pérolas de sabedoria da Sol.
— Dividir é importante — ele concordou — Eu estou disposto a dividir você com a sua mãe. Mas ela também tem que estar disposta a dividir sua irmã conosco.
Ele falava tão suavemente com ela que mal dava para perceber que estava manipulando a situação ao seu favor como sempre fez. Eu não sabia se socava a cara dele naquele momento ou esperava um momento propício quando Amy não estivesse por perto para destruir aquele rostinho bonito.
Amy lançou seus olhos na minha direção e ficou encarando à mim da mesma forma que Eve fazia quando queria algo de mim. Não era justo.
— Bonnie... — ela experimentou dizer meu nome, mas pela careta que fez soou estranho. Porém, na falta de coisa melhor prosseguiu —... Eu posso ver a Eve? Eu quero conhecê-la — e acrescentou rapidamente, de forma educada — Se você deixar.
Eu estava sem palavras, presa naquele olhar doce e ingênuo. Como eu poderia dizer não ao meu bebê? O meu anjinho que voltou dos mortos para alegrar minha vida?
Com lágrimas nos olhos e prometendo à mim mesma que faria de tudo para proteger minhas filhas de Kai, eu apenas disse:
— Claro, meu amor — sussurrei — Vou arranjar para que vocês se vejam amanhã.
— Eu posso... — ela começou, ainda tímida — posso conhecer sua casa? É que eu não saio muito, o papai não deixa, diz que não faz bem para mim ficar em lugares estranhos, mas... eu quero conhecer o mundo lá fora.
— Amy... — Kai acariciou seus cabelos contrariado com aquele pedido.
Ficar com ela na minha casa me daria mais vantagem e um pouco mais de segurança em relação àquele herege. Era melhor estar em terreno conhecido do que no do inimigo.
— Sim — aceitei seu pedido, temerosa, porém, satisfeita — Você vai adorar a nossa casa.
— Nossa casa? — ela arqueou as sobrancelhas, surpresa — É minha casa também?
— Claro que é — dei um sorriso genuíno, satisfeita com sua surpresa — Minha casa, sua e da Eve.
Ela pareceu radiante com a possibilidade.
— Lá tem um balanço como naqueles parques de diversões que passam na TV? — perguntou, ainda mais empolgada — E um escorrega?
Quando Eve era mais nova, eu havia mandado instalar um pequeno playground para passar seu tempo. Hoje em dia ela não tinha mais interesse em brincar com aquelas coisas, à menos, é claro, quando suas primas iam à nossa casa. Felizmente, todo ano eu pagava alguém para fazer uma revisão completa ou trocar algum equipamento avariado.
Nunca me senti tão feliz por ser tão prática e controladora com a minha filha como agora.
— Sim, tem sim — eu sorri para ela, mais feliz ainda por ver seu sorriso — Você pode brincar o dia todo com a sua irmã e...
— Ela não pode fazer esforço — Kai cortou a conversa, austero — Os pulmões dela não aguentam esse tipo de atividade.
O fuzilei com os olhos, irritada por ele estar roubando a atenção dela para si mais uma vez.
— Ela não precisa brincar neles, podemos fazer outras coisas que exigem menos esforço — eu disse, tentando soar menos ríspida na frente de Amy — Eve adora companhia, não importa que sejam em brincadeiras ou apenas para conversar.
Kai estava visivelmente contrariado, mas não disse nada. Afinal, eu tinha certeza de que ele não queria perder aquela pequena vitória.
Semicerrei os olhos, o encarando. Se ele achava que podia roubar a Eve de mim como havia feito com Amy estava muito enganado.
Ele perderia as duas para mim.
— Amélia? — ouvimos Sol chamar da cozinha.
— É melhor você ir antes que a sua abuelita brigue com você — Kai avisou, sorrindo travessamente para ela.
Amy trocou um olhar cúmplice com seu pai e apenas desceu de suas pernas.
— Aula de desenho mais tarde? — perguntou, ainda sorrindo.
— Claro que sim — ele sorriu para ela.
Ela olhou para mim e seu sorriso foi mais contido e tímido, mas ainda assim, gentil e doce.
– Vejo você amanhã... Bonnie — ela fez a mesma careta engraçada, mas eu não disse nada.
— Claro, meu amor — assenti, contendo aquele fulgor materno que me mandava abraçá-la tão apertado que a fundiria dentro de mim.
Amy seguiu pelo corredor vez ou outra lançando olhares na minha direção. Ela parecia muito feliz.
— Não deveria enchê-la de esperança assim — Kai disse, logo atrás de mim – Ela pode se decepcionar com muita facilidade.
Girei nos calcanhares, encarando-o em todo seu 1, 83 de altura.
— Esperança é uma arma poderosa e você sabe disso, não é, Kai? — lancei.
Ele apenas me encarou de volta e ergueu uma das mãos e ajeitou uma mecha comprida de meu cabelo atrás da orelha. Aquilo fez meu coração saltar como uma britadeira. Ele ainda me intimidava, mesmo após aqueles anos.
— Aulas de desenho? — desconversei, olhando em volta de sua sala e para minha surpresa, havia um cavalete encostado em um canto da sala que não havia notado quando entrei.
Nele havia o esboço de uma mulher de cabelos longos, usando um vestido negro, ajoelhada sobre um túmulo. Lágrimas desciam de seus olhos e seus dedos percorriam a lápide como em uma carícia.
Não havia dúvidas, aquela era eu. No túmulo de minha filha.
— Não sabia que você era fã das artes — comentei, ácida.
Pela primeira vez desde que nos encontramos, Kai ficou visivelmente encabulado, seu rosto ficando vermelho como um tomate. Ele apenas atravessou a sala e puxou outra folha por cima daquela, cobrindo-a de imediato.
— Isso é... é apenas... — ele se embaralhou com as palavras.
— Sadismo? — alfinetei — Porque me desenhar chorando sobre o túmulo da minha filha deve ser algo muito divertido para você.
— Bonnie... — tentou dizer, mas antes que pudesse continuar, acertei um soco em seu nariz ouvindo a cartilagem se partir mais uma vez.
— Que merda, Bonnie! — resmungou, com a mão no rosto, sangue pingando em sua camisa — Para de quebrar a porra do meu nariz, droga!
— Você já quebrou coisas piores em mim — dei de ombros — Pense nisso como um equilíbrio do seu karma.
Ele revirou os olhos, irritado e colocou a cartilagem no lugar com um som audível. Kai soltou um gemido de dor.
— Se você tentar manipular as minhas filhas mais uma vez assim, eu juro que não vou quebrar apenas o seu nariz — prometi, fuzilando-o com os olhos — E não deixe a Amy ver isso, porque se eu sonhar que ela está brava comigo porque bati na sua cara desprezível, eu juro que mato você e dou para os porcos comerem.
E nem mesmo deixei que ele abrisse a boca para proferir uma palavra sequer, pois, saí de seu escritório, ajeitando meus cabelos e limpando as marcas de sangue que estavam meu punho no vestido preto.
Me despedi de Sol ao passar pela cozinha e troquei algumas palavras rápidas com Amy que estava sentada na sala. Ela parecia muito mais aberta à conversas agora, apesar de ainda estar acanhada com minha atenção.
Kai a manteve tanto tempo naquela bolha de superprotecão que ela não conseguia nem mesmo falar com estranhos sem ficar envergonhada. Peguei minha bolsa e lancei um olhar amoroso para ela e segui para fora da fábrica abandonada.
Eu tinha tanta coisa para colocar em ordem antes de sua visita.
E precisaria, acima de tudo, conversar com Eve. Eu esperava que ela entendesse minhas motivações.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now